01/11/2014
Antonio Donato
Nobre é um dos nossos melhores cientistas, pertence ao grupo do IPCC que mede o
aquecimento da Terra e um especilista em questões amazônicas. É
mundialmente conhecido como pesquisador do INPE (Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais). Sustenta que o desmatamento para já, inclusive o
permitido por lei sem prejuizo do agronegócio que de ve incorpar fatores novos
da falta de água e das secas prolongadas. Enfatiza:”A agricultura consciente,
se soubesse o que a comunidade científica sabe, estaria na rua, com cartazes,
exigindo do governo proteção das florestas e plantando árvores em sua
propriedade”. Publicamos aqui sua entrevista aparecida no IHU de 31 de outubro
de 2014, dada a urgência do tema e seus efeitos maléficos notados no Sudeste,
especialmente na metrópole de São Paulo. Temos que divulgar conhecimentos para
assumirmos atitudes corretas e organizarmos nosso desenvolvimento a partir
destes dados inegáveis:Lboff
http://leonardoboff.wordpress.com
Eis a
entrevista.
Quanto já
desmatamos da Amazônia brasileira?
Só de corte
raso, nos últimos 40 anos, foram três Estados de São Paulo, duas Alemanhas ou
dois Japões. São 184 milhões de campos de futebol, quase um campo por brasileiro.
A velocidade do desmatamento na Amazônia, em 40 anos, é de um trator com uma
lâmina de três metros se deslocando a 726 km/hora – uma espécie de trator do
fim do mundo. A área que foi destruída corresponde a uma estrada de 2 km de
largura, da Terra até a Lua. E não estou falando de degradação florestal.
Essa é a
“guilhotina de árvores” que o senhor menciona?
Foram destruídas
42 bilhões de árvores em 40 anos, cerca de 3 milhões de árvores por dia, 2.000
árvores por minuto. É o clima que sente cada árvore que é retirada da Amazônia.
O desmatamento sem limite encontrou no clima um juiz que conta árvores, não
esquece e não perdoa.
O sr. pode
explicar?
Os cientistas
que estudam a Amazônia estão preocupados com a percepção de que a floresta é
potente e realmente condiciona o clima. É uma usina de serviços ambientais. Ela
está sendo desmatada e o clima vai mudar.
A mudança
climática…
A mudança
climática já chegou. Não é mais previsão de modelo, é observação de noticiário.
Os céticos do clima conseguiram uma vitória acachapante, fizeram com que
governos não acreditassem mais no aquecimento global. As emissões aumentaram
muito e o sistema climático planetário está entrando em falência como previsto,
só que mais rápido.
No estudo o sr.
relaciona destruição da floresta e clima?
A literatura é
abundante, há milhares de artigos escritos, mais de duas dúzias de projetos
grandes sendo feitos na Amazônia, com dezenas de cientistas. Li mais de 200
artigos em quatro meses. Nesse estudo quis esclarecer conexões, porque esta
discussão é fragmentada. “Temos que desenvolver o agronegócio. Mas e a
floresta? Ah, floresta não é assunto meu”. Cada um está envolvido naquilo que
faz e a fragmentação tem sido mortal para os interesses da humanidade. Quando
fiz a síntese destes estudos, eu me assombrei com a gravidade da situação.
Qual é a
situação?
A situação é de
realidade, não mais de previsões. No arco do desmatamento, por exemplo, o clima
já mudou. Lá está aumentando a duração da estação seca e diminuindo a duração e
volume de chuva. Agricultores do Mato Grosso tiveram que adiar o plantio da
soja porque a chuva não chegou. Ano após ano, na região leste e sul da
Amazônia, isso está ocorrendo. A seca de 2005 foi a mais forte em cem anos.
Cinco anos depois teve a de 2010, mais forte que a de 2005. O efeito externo
sobre a Amazônia já é realidade. O sistema está ficando em desarranjo.
A seca em São
Paulo se relaciona com mudança do clima?
Pegue o
noticiário: o que está acontecendo na Califórnia, na América Central, em partes
da Colômbia? É mundial. Alguém pode dizer – é mundial, então não tem nada a ver
com a Amazônia. É aí que está a incompreensão em relação à mudança climática:
tem tudo a ver com o que temos feito no planeta, principalmente a destruição de
florestas. A consequência não é só em relação ao CO2 que sai, mas a destruição
de floresta destrói o sistema de condicionamento climático local. E isso, com
as flutuações planetárias da mudança do clima, faz com que não tenhamos nenhuma
almofada.
Almofada?
A floresta é um
seguro, um sistema de proteção, uma poupança. Se aparece uma coisa imprevista e
você tem algum dinheiro guardado, você se vira. É o que está acontecendo agora,
não sentimos antes os efeitos da destruição de 500 anos da Mata Atlântica,
porque tínhamos a “costa quente” da Amazônia. A sombra úmida da floresta
amazônica não permitia que sentíssemos os efeitos da destruição das florestas
locais.
O sr. fala em
tapete tecnológico da Amazônia. O que é?
Eu queria
mostrar o que significa aquela floresta. Até eucalipto tem mais valor que
floresta nativa. Se olharmos no microscópio, a floresta é a hiper abundância de
seres vivos e qualquer ser vivo supera toda a tecnologia humana somada. O
tapete tecnológico da Amazônia é essa assembleia fantástica de seres vivos que
operam no nível de átomos e moléculas, regulando o fluxo de substâncias e de
energia e controlando o clima.
O sr. fala em
cinco segredos da Amazônia. Quais são?
O primeiro é o
transporte de umidade continente adentro. O oceano é a fonte primordial de toda
a água. Evapora, o sal fica no oceano, o vento empurra o vapor que sobe e entra
nos continentes. Na América do Sul, entra 3.000 km na direção dos Andes com
umidade total. O segredo? Os gêiseres da floresta.
Gêiseres da
floresta?
É uma metáfora.
Uma árvore grande da Amazônia, com dez metros de raio de copa, coloca mais de
mil litros de água em um dia, pela transpiração. Fizemos a conta para a bacia
Amazônica toda, que tem 5,5 milhões de km2: saem desses gêiseres de madeira 20
bilhões de toneladas de água diárias. O rio Amazonas, o maior rio da Terra, que
joga 20% de toda a água doce nos oceanos, despeja 17 bilhões de toneladas de
água por dia. Esse fluxo de vapor que sai das árvores da floresta é maior que o
Amazonas. Esse ar que vai progredindo para dentro do continente vai recebendo o
fluxo de vapor da transpiração das árvores e se mantém úmido, e, portanto, com
capacidade de fazer chover. Essa é uma característica das florestas.
É o que faz
falta em São Paulo?
Sim, porque aqui
acabamos com a Mata Atlântica, não temos mais floresta.
Qual o segundo
segredo?
Chove muito na
Amazônia e o ar é muito limpo, como nos oceanos, onde chove pouco. Como, se as
atmosferas são muito semelhantes? A resposta veio do estudo de aromas e odores
das árvores. Esses odores vão para atmosfera e quando têm radiação solar e
vapor de água, reagem com o oxigênio e precipitam uma poeira finíssima, que
atrai o vapor de água. É um nucleador de nuvens. Quando chove, lava a poeira,
mas tem mais gás e o sistema se mantém.
E o terceiro
segredo?
A floresta é um
ar-condicionado e produz um rio amazônico de vapor. Essa formação maciça de
nuvens abaixa a pressão da região e puxa o ar que está sobre os oceanos para
dentro da floresta. É um cabo de guerra, uma bomba biótica de umidade, uma
correia transportadora. E na Amazônia, as árvores são antigas e têm raízes que
buscam água a mais de 20 metros de profundidade, no lençol freático. A floresta
está ligada a um oceano de água doce embaixo dela. Quando cai a chuva, a água
se infiltra e alimenta esses aquíferos.
Como tudo isso
se relaciona à seca de São Paulo?
No quarto
segredo. Estamos em um quadrilátero da sorte – uma região que vai de Cuiabá a
Buenos Aires no Sul, São Paulo aos Andes e produz 70% do PIB da América do Sul.
Se olharmos o mapa múndi, na mesma latitude estão o deserto do Atacama, o
Kalahari, o deserto da Namíbia e o da Austrália. Mas aqui, não, essa região era
para ser um deserto. E no entanto não é, é irrigada, tem umidade. De onde vem a
chuva? A Amazônia exporta umidade. Durante vários meses do ano chega por aqui,
através de “rios aéreos”, o vapor que é a fonte da chuva desse quadrilátero.
E o quinto
segredo?
Onde tem
floresta não tem furacão nem tornado. Ela tem um papel de regularização do
clima, atenua os excessos, não deixa que se organizem esses eventos
destrutivos. É um seguro.
Qual o impacto
do desmatamento então?
O desmatamento
leva ao clima inóspito, arrebenta com o sistema de condicionamento climático da
floresta. É o mesmo que ter uma bomba que manda água para um prédio, mas eu a
destruo, aí não tem mais água na minha torneira. É o que estamos fazendo. Ao
desmatar, destruímos os mecanismos que produzem esses benefícios e ficamos
expostos à violência geofísica. O clima inóspito é uma realidade, não é mais
previsão. Tinha que ter parado com o desmatamento há dez anos. E parar agora
não resolve mais.
Como não resolve
mais?
Parar de
desmatar é fundamental, mas não resolve mais. Temos que conter os danos ao
máximo. Parar de desmatar é para ontem. A única reação adequada neste momento é
fazer um esforço de guerra. A evidência científica diz que a única chance de
recuperarmos o estrago que fizemos é zerar o desmatamento. Mas isso será
insuficiente, temos que replantar florestas, refazer ecossistemas. É a nossa
grande oportunidade.
E se não
fizermos isso?
Veja pela janela
o céu que tem em São Paulo – é de deserto. A destruição da Mata Atlântica nos
deu a ilusão de que estava tudo bem, e o mesmo com a destruição da Amazônia.
Mas isso é até o dia em que se rompe a capacidade de compensação, e é esse
nível que estamos atingindo hoje em relação aos serviços ambientais. É muito
sério, muito grave. Estamos indo direto para o matadouro.
O que o sr. está
dizendo?
Agora temos que
nos confrontar com o desmatamento acumulado. Não adianta mais dizer “vamos
reduzir a taxa de desmatamento anual.” Temos que fazer frente ao passivo, é ele
que determina o clima.
Tem quem diga
que parte desses campos de futebol viraram campos de soja.
O clima não dá a
mínima para a soja, para o clima importa a árvore. Soja tem raiz de pouca
profundidade, não tem dossel, tem raiz curta, não é capaz de bombear água. Os
sistemas agrícolas são extremamente dependentes da floresta. Se não chegar
chuva ali, a plantação morre.
O que significa
tudo isso? Que vai chover cada vez menos?
Significa que
todos aqueles serviços ambientais estão sendo dilapidados. É a mesma coisa que
arrebentar turbinas na usina de Itaipu – aí não tem mais eletricidade. É de
clima que estamos falando, da umidade que vem da Amazônia. É essa a dimensão
dos serviços que estamos perdendo. Estamos perdendo um serviço que era gratuito
que trazia conforto, que fornecia água doce e estabilidade climática. Um estudo
feito na Geórgia por uma associação do agronegócio com ONGs ambientalistas
mediu os serviços de florestas privadas para áreas urbanas. Encontraram um
valor de US$ 37 bilhões. É disso que estamos falando, de uma usina de serviços.
As pessoas em
São Paulo estão preocupadas com a seca.
Sim, mas quantos
paulistas compraram móveis e construíram casas com madeira da Amazônia e nem
perguntaram sobre a procedência? Não estou responsabilizando os paulistas
porque existe muita inconsciência sobre a questão. Mas o papel da ciência é
trazer o conhecimento. Estamos chegando a um ponto crítico e temos que avisar.
Esse ponto
crítico é ficar sem água?
Entre outras
coisas. Estamos fazendo a transposição do São Francisco para resolver o
problema de uma área onde não chove há três anos. Mas e se não tiver água em
outros lugares? E se ocorrer de a gente destruir e desmatar de tal forma que a
região que produz 70% do PIB cumpra o seu destino geográfico e vire deserto?
Vamos buscar água no aquífero?
Não é uma opção?
No norte de
Pequim, os poços estão já a dois quilômetros de profundidade. Não tem uso
indefinido de uma água fóssil, ela tem que ter algum tipo de recarga. É um
estoque, como petróleo. Usa e acaba. Só tem um lugar que não acaba, o oceano,
mas é salgado.
O esforço de
guerra é para acabar com o desmatamento?
Tinha que ter
acabado ontem, tem que acabar hoje e temos que começar a replantar florestas.
Esse é o esforço de guerra. Temos nas florestas nosso maior aliado. São uma
tecnologia natural que está ao nosso alcance. Não proponho tirar as plantações
de soja ou a criação de gado para plantar floresta, mas fazer o uso inteligente
da paisagem, recompor as Áreas de Proteção Permanente (APPs) e replantar
florestas em grande escala. Não só na Amazônia. Aqui em São Paulo, se tivesse
floresta, o que eu chamo de paquiderme atmosférico…
Como é?
É a massa de ar
quente que “sentou” no Sudeste e não deixa entrar nem a frente fria pelo Sul
nem os rios voadores da Amazônia.
O que o governo
do Estado deveria fazer?
Programas
massivos de replantio de reflorestas. Já. São Paulo tem que erradicar
totalmente a tolerância com relação a desmatamento. Segunda coisa: ter um
esforço de guerra no replantio de florestas. Não é replantar eucalipto.
Monocultura de eucalipto não tem este papel em relação a ciclo hidrológico, tem
que replantar floresta e acabar com o fogo. Poderia começar reconstruindo
ecossistemas em áreas degradadas para não competir com a agricultura.
Onde?
Nos morros
pelados onde tem capim, nos vales, em áreas íngremes. Em vales onde só tem
capim, tem que plantar árvores da Mata Atlântica. O esforço de guerra para
replantar tem que juntar toda a sociedade. Precisamos reconstruir as florestas,
da melhor e mais rápida forma possível.
E o desmatamento
legal?
Nem pode entrar
em cogitação. Uma lei que não levou em consideração a ciência e prejudica a
sociedade, que tira água das torneiras, precisa ser mudada.
O que achou de
Dilma não ter assinado o compromisso de desmatamento zero em 2030, na reunião
da ONU, em Nova York?
Um absurdo sem
paralelo. A realidade é que estamos indo para o caos. Já temos carros-pipa na
zona metropolitana de São Paulo. Estamos perdendo bilhões de dólares em valores
que foram destruídos. Quem é o responsável por isso? Um dia, quando a sociedade
se der conta, a Justiça vai receber acusações. Imagine se as grandes áreas
urbanas, que ficarem em penúria hídrica, responsabilizarem os grandes lordes do
agronegócio pelo desmatamento da Amazônia. Espero que não se chegue a essa
situação. Mas a realidade é que a torneira da sua casa está secando.
Quanto a
floresta consegue suportar?
Temos uma
floresta de mais de 50 milhões de anos. Nesse período é improvável que não
tenham acontecido cataclismas, glaciação e aquecimento, e no entanto a Amazônia
e a Mata Atlântica ficaram aí. Quando a floresta está intacta, tem capacidade
de suportar. É a mesma capacidade do fígado do alcoólatra que, mesmo tomando
vários porres, não acontece nada se está intacto. Mas o desmatamento faz com
que a capacidade de resiliência que tínhamos, com a floresta, fique perdida.
Aí vem uma
flutuação forte ligado à mudança climática global e nós ficamos muito expostos,
como é o caso do “paquiderme atmosférico” que sentou no Sudeste. Se tivesse
floresta aqui, não aconteceria, porque a floresta resfria a superfície e
evapora quantidade de água que ajuda a formar chuva.
O esforço terá
resultado?
Isso não é
garantido, porque existem as mudanças climáticas globais, mas reconstruir
ecossistemas é a melhor opção que temos. Quem sabe a gente desenvolva outra
agricultura, mais harmônica, de serviços agroecossistêmicos. Não tem nenhuma
razão para o antagonismo entre agricultura e conservação ambiental. Ao
contrário. A agricultura consciente, que soubesse o que a comunidade científica
sabe, estaria na rua, com cartazes, exigindo do governo proteção das florestas.
E, por iniciativa própria, replantaria a floresta nas suas propriedades.
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