FERNANDO VICENTE
Os cavalheiros japoneses já não se
suicidam. Mas o ritual da imolação se mantém no mundo e agora é coletivo. É
praticado por países como Argentina e Venezuela, e agora se aproxima da Grécia
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O haraquiri é uma nobre tradição
japonesa pela qual militares, políticos, empresários e às vezes escritores
(como Yukio Mishima), envergonhados por fracassos ou atos que, acreditavam, os
desonravam, desventravam-se em uma cerimônia sangrenta. Nestes tempos, em que a
ideia da honra foi reduzida ao mínimo, os cavalheiros japoneses já não se
suicidam. Mas o ritual da imolação se mantém no mundo e agora é coletivo: é
praticado pelos países que, tomados por um desvario passageiro ou duradouro,
decidem empobrecer-se, barbarizar-se, corromper-se, ou todas essas coisas ao
mesmo tempo.
A América Latina está repleta de tais
exemplos trágicos. O mais
notável é o da Argentina, que há três quartos de século era um país do
Primeiro Mundo, próspero, culto, aberto, com um sistema educacional modelar e
que, subitamente, tomada pela febre peronista, decidiu retroceder e se
arruinar, uma longa agonia que, sustentada por sucessivos golpes militares e
uma homérica persistência no erro de seus eleitores, ainda se mantém. Esperemos
que algum dia os deuses ou o acaso devolvam a sensatez e a lucidez à terra de
Sarmiento e Borges.
Outro caso emblemático de haraquiri político é o da
Venezuela. Tinha uma democracia imperfeita, é certo, mas real, com imprensa
livre, eleições legítimas, partidos políticos diversos, e, mal e mal, o país
progredia. Lamentavelmente, abundavam a corrupção e o desperdício, e isso levou
a maioria dos venezuelanos a descrer da democracia e confiar sua sorte a um
caudilho messiânico: o comandante Hugo Chávez. Tiveram oito vezes a chance de
corrigir seu erro, mas não o fizeram, votando de novo e de novo em um regime
que os conduzia ao precipício. Hoje pagam caro por sua cegueira. A ditadura é
uma realidade asfixiante, fechou emissoras de televisão, rádios e jornais,
encheu as prisões de dissidentes, multiplicou a corrupção a extremos
vertiginosos – um dos principais dirigentes militares do regime comanda o
narcotráfico, o único setor que floresce num país no qual a economia afundou e
a pobreza triplicou —, e as instituições, dos juízes ao Conselho Nacional
Eleitoral, servem ao poder. Apesar de haver uma significativa maioria dos
venezuelanos que quer voltar à liberdade, não será fácil: o Governo de Maduro
demonstrou que, embora inepto para tudo mais, na hora de fraudar eleições e de
encarcerar, torturar e assassinar opositores suas mãos não tremem.
O haraquiri não é uma especialidade
terceiro-mundista; também a civilizada Europa o pratica, de tempos em tempos.
Hitler e Mussolini chegaram ao poder por vias legais, e bom número de países
centro-europeus se jogou nos braços de Stálin sem grandes escrúpulos. O caso
mais recente parece ser o da Grécia, que, em eleições livres, acaba de levar ao
poder – com 36% dos votos – o Syriza, um partido demagógico e populista de
extrema-esquerda, que se aliou para governar com uma pequena organização de
direita ultranacionalista e antieuropeia. O Syriza prometeu aos gregos uma
revolução e o paraíso. No catastrófico estado em que se encontra o país que
foi o berço da democracia e da cultura ocidental, talvez seja compreensível
essa catarse sombria do eleitorado grego. Só que, em vez de superar as pragas
que o assolam, elas poderão recrudescer agora se o novo Governo se empenhar em
pôr em prática o que ofereceu a seus eleitores.
Tais pragas são uma dívida pública
vertiginosa, de 317 bilhões de euros [mais de um trilhão de reais] com a União
Europeia e com o sistema financeiro internacional, que resgataram a Grécia de
sua quebra, e equivale a 175% do produto interno bruto. Desde o início da crise
o PIB da Grécia caiu 25%, e a taxa de desemprego chegou a quase 26%. Isso
significa o colapso dos serviços públicos, uma queda atroz do nível de vida e
um crescimento canceroso da pobreza. Se for para ouvir os dirigentes do Syriza
e seu inspirado líder – o
novo primeiro-ministro Alexis Tsipras –, essa situação não se deve à
incapacidade e à corrupção desenfreada dos governos gregos ao longo de várias
décadas, que, com irresponsabilidade delirante, chegaram a apresentar balanços
e relatórios econômicos forjados à União Europeia para esconder seus erros, e
sim às medidas de austeridade impostas pelos organismos internacionais e pela
Europa à Grécia, para resgatá-la do desamparo a que as más políticas a haviam
conduzido.
O Syriza propôs acabar com a austeridade
e com as privatizações, renegociar o pagamento da dívida, com a condição de que
houvesse uma “quitação” (ou perdão) relevante, e reativar a economia, o emprego
e os serviços, com investimentos públicos sustentados. Um milagre equivalente a
curar um doente terminal fazendo-o correr maratonas. Dessa maneira o povo grego
recuperaria uma “soberania” que lhe teria sido tomada, ao que parece, pela
Europa em geral, e em particular pela troika e pelo Governo da senhora Merkel.
O melhor que pode acontecer é que essas
bravatas da campanha eleitoral sejam arquivadas agora que o Syriza já tem
responsabilidades de Governo e, como fez François Hollande na França, reconheça
que prometeu coisas mentirosas e impossíveis e retifique seu programa com
espírito pragmático, o que, sem dúvida, provocará uma decepção terrível entre
seus ingênuos eleitores. Se não o fizer, a Grécia encara a bancarrota, o
abandono do euro e da União Europeia e o mergulho no subdesenvolvimento. Há
sinais contraditórios, e não está claro ainda se o novo Governo grego recuará.
Acaba de propor, no lugar do perdão, uma fórmula picaresca e enganosa, que
consiste em converter sua dívida em duas classes de títulos, alguns reais, que
seriam pagos à medida que sua economia crescesse, e outros fantasmas, que
seriam renovados ao longo da eternidade. França e Itália, vítimas também de
graves problemas econômicos, manifestaram não ver com maus olhos tal proposta.
Ela não prosperará, sem dúvida, porque nem todos os países europeus perderam a
noção de realidade.
Em primeiro lugar, e com muita razão,
vários membros da União Europeia, além da Alemanha, lembraram à Grécia que não
aceitam “quitações”, explícitas ou disfarçadas, e que os países precisam
cumprir seus compromissos. Os mais severos a esse respeito foram Portugal,
Espanha e Irlanda, que, depois de grandes sacrifícios, estão saindo da crise
depois de cumprir rigorosamente com suas obrigações. A Grécia deve à Espanha 26
bilhões de euros [81,9 bilhões de reais]. A recuperação espanhola custou
sangue, suor e lágrimas. Por que teriam os espanhóis que pagar do seu bolso as
más políticas dos governos gregos, além de já pagarem pelas dos seus?
A Alemanha não é culpada de que um bom
número de países da Europa comunitária tenha sua economia transformada em
ruínas. A Alemanha teve governos prudentes e competentes, austeros e honrados,
e por isso, enquanto outros países se desmanchavam, ela crescia e se
fortalecia. E não se pode esquecer que a Alemanha precisou absorver e
ressuscitar um cadáver – a Alemanha comunista – à custa, também, de formidáveis
esforços, sem se queixar nem pedir ajuda a ninguém, apenas com o empenho e o
estoicismo de seus cidadãos. Por outro lado, o Governo alemão da senhora Merkel
é um europeísta determinado, e a melhor prova disso é a maneira generosa e
constante com que apoia, com seus recursos e suas iniciativas, a construção
europeia. Apenas a proliferação dos estereótipos e mitos ideológicos explica
esse fenômeno de transferência freudiana que leva a Grécia (não é a única) a
culpar o mais eficiente país da União Europeia pelos desastres provocados pelos
políticos que durante tantos anos o povo grego enviou ao Governo com seus votos
e que o deixaram no pavoroso estado em que se encontra.
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