(Mário António Fernandes de Oliveira. Maquela do Zombo, 05/04/1934 - Lisboa, 07/02/1989) Estudos primários e liceais em Angola. Licenciado em Ciências Sociais e Políticas pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas e doutorado em literaturas africanas de língua portuguesa pela Universidade Nova de Lisboa. Foi considerado dissidente pelo MPLA e menosprezado pelo regime angolano. Sua obra foi, injustamente, relegada à segundo plano. Morreu em Portugal em 1989, país onde morou desde 1963.
http://betogomes.sites.uol.com.br/MarioAntonio.htm
Obra poética:
Poesias, 1956, Lisboa, e. a.;
Poemas & Canto Miúdo, 1961, Sá da Bandeira, Coleção Imbondeiro;
Chingufo, 1962, Lisboa, AGU;
100 Poemas, 1963, Luanda, Ed. ABC;
Era Tempo de Poesia, 1966, Sá da Bandeira, Coleção Imbondeiro;
Rosto de Europa, 1968, Braga, Ed. Pax;
Coração Transplantado, 1970, Braga, Ed. Pax;
Afonso, o Africano, 1980, Braga, Ed. Pax;
50 Anos - 50 Poemas, 1988, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda;
Obra Poética (inclui todos os livros anteriores), 1999, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda.
Rua da Maianga
Rua da Maianga
que traz o nome de um qualquer missionário
mas para nós somente
a rua da Maianga
Rua da Maianga às duas goras da tarde
lembrança das minhas idas para a escola
e depois para o liceu
Rua da Maianga dos meus surdos rancores
que sentiste os meus passos alterados
e os ardores da minha mocidade
e a ânsia dos meus choros desabalados!
Rua da Maianga às seis horas e meia
apito do comboio estremecendo os muros
Rua antiga da pedra incerta
que feriu meus pezitos de criança
e onde depois o alcatrão veio lembrar
velocidades aos carros
e foi luto na minha infância passada!
(Nené foi levado pro Hospital
meus olhos encontraram Nené morto
meu companheiro de infância de olhos vivos
seu corpo morto numa pedra fria!)
Rua da Maianga a qualquer hora do dia
as mesmas caras nos muros
(As caras da minha infância
nos muros inapagados!)
as moças nas janelas fingindo costurar
a velha gorda faladeira
e a pequena moeda na mão do menino
e a goiaba chamando dos cestos
à porta das casas!
(Tão parecido comigo esse menino!)
Rua da Maianga a qualquer hora
O liso alcatrão e as suas casas
As eternas moças de muro
Rua da Maianga me lembrando
Meu passado inutilmente belo
Inutilmente cheio de saudade!
(Obra poética)
Beijo-de-mulata
Pai:
Olho o teu rosto fechado
nas letras apagadas dessa campa
a tua
(no quadro dezasseis
do Cemitério Velho)
e não sei que mistério poderoso
me prende os olhos,
Pai!
A pedra não diz nada senão pedra.
Os beijos-de-mulata que plantaram
sobre o teu corpo
continuam florindo da tua substância.
Não surge sobre a campa
O sorriso de que dourei tua lembrança,
Pai!
Não fico mais aqui, porque estás longe.
Tudo quanto estou ouvindo e repetindo
vem de dentro de mim
de um já longínquo mundo.
Apenas levarei um beijo-de-mulata
eterna florescência do teu ser
lembrança imperecida da tristeza
que marcou o teu rosto sofredor.
(Obra poética)
Linha quatro
No largo da Mutamba às seis e meia
carros pra cima carros pra baixo
gente subindo gente descendo
esperarei.
De olhar perdido naquela esquina
onde ao cair da noite a manhã nasce
quando tu surges
esperarei.
Irei pr'á bicha da linha quatro
Atrás de ti. (Nem o teu nome!)
Atrás de ti sem te falar
só a querer-te.
(Gente operária na nossa frente
rosto cansado. Gente operária
braços caídos sonhos nos olhos.
Na linha quatro eles se encontram
Zito e Domingas. Todos os dias
na linha quatro eles se encontram.
No maximbombo da linha quatro
se sentam juntos. As mãos nas mãos
transmitem sonhos que se não dizem.)
No maximbombo da linha quatro
conto meus sonhos sem te falar.
Guardo palavras teço silêncios
que mais nos unem.
Guardo fracassos que não conheces
Zito também. Olhos de cinza
como Domingas
o que me ofereces!
No maximbombo da linha quatro
sigo a teu lado. Também na vida.
Também na vida subo a calçada
Também na vida!
Não levo sonhos: A vida é esta!
Não levo sonhos. Tu a meu lado
sigo contigo: Pra quê falar-te?
Pra quê sonhar?
No maximbombo da linha quatro
não vamos sós. Tu e Domingas.
Gente que sofre gente que vive
não vamos sós.
Não vamos sós. Nem eu nem Zito.
Também na vida. Gente que vive
Sonhos calados sonhos contidos
Não vamos sós.
Também na vida! Também na vida!
(Obra poética)
Noites de luar no morro da Maianga
Noites de luar no Morro da Maianga
Anda no ar uma canção de roda:
"Banana podre não tem fortuna
Fru-tá-tá, fru-tá-tá..."
Moças namorando nos quintais de madeira
Velhas falando conversa antigas
Sentadas na esteira
Homens embebedando-se nas tabernas
E os emigrados das ilhas...
- Os emigrados das ilhas
Com o saldo mar nos cabelos
Os emigrados das ilhas
Que falam de bruxedos e sereias
E tocam violão
E puxam faca nas brigas...
Ó ingenuidade das canções infantis
Ó namoros de moças sem cuidado
Ó histórias de velhas
Ó mistérios dos homens
Vida!:
Proletários esquecendo-se nas tascas
Emigrantes que puxam faca nas brigas
E os sons do violão
E os cânticos da Missão
Os homens
Os homens
As tragédias dos homens!
(Obra poética)
Uma negra convertida
Minha avó negra, de panos escuros,
da cor do carvão...
Minha avó negra de panos escuros
que nunca mais deixou...
Andas de luto,
toda és tristeza...
Heroína de idéias,
rompeste com a velha tradição
dos cazumbis, dos quimbandas...
Não xinguilas, no óbito.
Tuas mãos de dedos encarquilhados,
tuas mãos calosas da enxada,
tuas mãos que preparam mimos da Nossa Terra,
quitabas e quifufutilas,
tuas mãos, ora tranqüilas,
desfilam as contas gastas de um rosário já velho...
Teus olhos perderam o brilho;
e da tua mocidade
só te ficou a saudade
e um colar de missangas...
Avózinha,
as vezes, ouço vozes que te segredam
saudades da tua velha sanzala,
da cubata onde nasceste,
das algazarras dos óbitos,
das tentadoras mentiras do quimbanda,
dos sonhos de alambamento
que supunhas merecer...
E penso que... se pudesses,
talvez revivesses
as velhas tradições!
(Obra poética)
Fuga para a Infância
Nas tardes de domingo
(cheirava a doce de coco e rebuçado)
os meninos brincavam
iam passear ao mar
até o Morro iam
ver a gente.
O menino ficou preso
quando cresceu.
E nas tardes de domingo
vozes vinham chamá-lo
vinham ecos de vozes
que lindas vozes o menino ouvia!
Mas o menino estava preso
e não saía...
Numa tarde de domingo
os outros meninos vieram chamar
o menino preso...
E foi nessa tarde de domingo
(cheirava a doce de coco e rebuçado)
que o menino fugiu para não voltar.
(Obra poética)
Enfermaria
1
Que tinha esse jardim a ver com a minha enxerga?
E a tua saia azul
Com o meu lençol de cor indefinida?
Ai, teto da enfermaria!
Duas lâmpadas
Mais três
Mais duas lâmpadas
(A do meio fica acesa toda a noite
Toda a noite acesa!)
E este cheiro nauseabundo
E o homem que chama
Lá no fundo
Pela mãe!
Ai, teto da enfermaria!
Como pudesse aparecer ao encontro que não marcamos?
Como pudeste aparecer
Se nunca, até agora, me tinhas aparecido?
(A tua saia estendida sobre a relva
E a minha mão divagando em teus cabelos...)
Tua presença...
A insinuar-me vida e liberdade,
Segredando-me amor e juventude
Tua presença...
Bendita!
2
E pensar
Que além deste teto está o céu
E detrás das paredes está o mar
(O mar sereno e quente
O mar sereno e azul
Tal como o céu!)
E a gente que trabalha
E a canção dessa gente
(Praias amarelas, praias amarelas
E as nódoas das redes sobre as praias!)
Tão perto do mar!
Tão perto do céu!
Mais perto
Do que se andasse lá fora!...
Lembrança de negrinhos brincando sobre a areia...
Afinal, estou lá sem saber:
Negrinho, na minha infância perdida!
(Obra poética)
Chuva
Outrora
Quando a chuva vinha
Era a alegria que chegava
Para as árvores
O capim
E para a gente.
Era a hora do banho sob a chuva
Meninos sem chuveiro
A água regateada na cacimba
Muitas horas de pé esperando a vez.
Era a alegria de todos, essa chuva:
Porque então fiz o primeiro poema triste?
Hoje ela veio
Veio sem o encanto de outras eras
E ergueu na minha frente o tempo ido.
Porque estou triste?
Porque estou só?
A canção é sempre a mesma
Mesmos os fantasmas, meu amor:
Inútil o teu sol ante os meus olhos
Inútil teu calor nas minhas mãos.
Essa chuva é minha amante
Velho fantasma meu:
Inútil, meu amor, tua presença.
(Obra poética)
Retrato
Olho e vejo através dos óculos
A escura face com óculos
Desse teu retrato antigo:
Fato de brim, engomado
Gravata preta apertada
Só te falta o capacete
De cortiça, todo branco
Para seres o mesmo ser
Prolongado pela vida
Que o Seminário marcou.
Face tocada do rito
Da revelação vivida
(Face dos padres que foram
Flores escuras da Igreja)
Olhar aberto ao mistério
Certo que as chaves do mundo
Sempre às mãos nos vêm dar
Era no tempo em que a vida
Se entretinha e prometia
Nas longas conversas cheias
(Sem verdes) de impossibilidades.
Lembro alguns dos teus amigos
(Fato de brim, capacete)
Os longos passeios dados
Pelos domingos à tarde
Conversa larga e pausada
Repouso nos sítios ermos
Prolongáveis pela vida
Os tempos do Seminário
Com suas marchas ordeiras
Suas falas sussurradas.
Alguns amigos mudaram
(Mal se vê o fato de brim
Ninguém usa capacete)
Tu permaneces o mesmo:
Quando a morte te levou
Havia o mesmo rito
Na tua face parada.
E assim tu ficaste, Pai:
Com teu sorriso incompleto
Na certeza entressonhada.
Olho e vejo através dos óculos
A escura face com óculos
Desse teu retrato antigo:
Sou eu que me vejo ao espelho.
Teu sorriso anda comigo
Na ânsia de completar-se.
Comigo o teu acanhamento
Teu sonho e vida e solidão
E, prolongada na minha,
A tua poesia.
(Obra poética)
Donas do outro tempo
Donas do outro tempo
Vejo-as neste retrato amarelado:
Como estranhas flores desabrochadas
Negras, no ar, soltas, as quindumbas.
Panos garridos nobremente postos
E a posição hierática dos corpos.
São três sobre as esteiras assentadas
Numa longínqua tarde de festejo.
(Tinha ancorado barco lá no rio?
Havia bom negócio com o gentio?
Celebrava-se a santa milagrosa
Tosca, tornada cúmplice de pragas
Carregada de ofertas, da capela?)
A seu lado, sentados em cadeiras,
Três homens de chapéu, colete e laço.
Botinas altas, botas de cheviote.
Donas do tempo antigo, que perguntas
Poderia fazer aos vossos olhos
Abertos para o obturador da fotográfica?
Senhoras de moleques e discípulas
Promotoras de negócios e quitandas
Rendilheiras de jinjiquita e lavarindo
Donas que percebíeis a unidade
Íntima, obscura, do mistério e do desígnio
Atentas ao acaso que é a vida
(Há sopros maus no vento! Gritos maus
No rio, na noite, no arvoredo!)
E que, porque sabíeis que a vida é larga e vária
E vários e largos os caminhos possíveis
A nova fé vos destes, confiantes,
O que ficou de vós, donas do outro tempo?
Como encontrar em vossas filhas de hoje
A vossa intrepidez, a vossa sabedoria?
Os tempos são bem outros e mudados.
A tarde da fotografia, irrepetível.
Água do rio Cuanza não pára de correr
Sempre outra e renovada.
E dessa fotografia talvez hoje só exista
Na vilória onde as casas são baixas e fechadas
E têm corpo, pesam, as sombras e o calor
A sombra farfalhante da mulemba
Que vos deu sombra e fresco nesse domingo antigo.
(Obra poética)