Nova Iorque - O governo angolano deve retirar a proposta de lei sobre a criminalidade no domínio das tecnologias de informação e comunicação, actualmente sob apreciação do Parlamento, anunciou hoje a Human Rights Watch. A legislação proposta prejudicaria a liberdade de expressão e de informação e constituiria uma grave ameaça para os meios de comunicação independentes, os autores de denúncias e o jornalismo de investigação.
Fonte: Club-k.net/HRW
A proposta de lei também daria carta-branca às forças de segurança para a busca e apreensão de informação sem a devida autorização prévia, e criaria sanções mais severas para crimes já previstos por legislação anterior caso sejam cometidos através de tecnologias electrónicas de informação, afirmou a Human Rights Watch.
“Esta proposta de lei diz-se em linha com as melhores práticas internacionais mas, de facto, não define salvaguardas concretas para proteger o direito do público de saber e falar”, afirmou Daniel Bekele, diretor de África da Human Rights Watch. “Iria aprofundar as restrições já existentes no ambiente dos meios de comunicação em Angola e estendê-las à internet, à qual muitos angolanos têm vindo a recorrer em busca de um debate aberto sobre questões que o governo quer limitar."
O parlamento angolano, dominado pelo Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), o partido no poder, aprovou a proposta de lei sobre a criminalidade no domínio das tecnologias de informação a 31 de Março de 2011, sem ter dado azo a um debate público mais alargado. A proposta de lei foi aprovada como parte de um pacote de leis destinado a regulamentar as tecnologias de informação e a protecção de dados. Continuaram a desenvolver-se discussões internas nas comissões parlamentares, que também são dominadas pelo partido no poder.
Em Abril, um grupo de jornalistas e de activistas cívicos apresentaram as suas principais preocupações em relação à proposta de lei, por escrito, ao parlamento. Em resposta, o governo, num encontro fechado ao público com o Sindicato dos Jornalistas Angolanos, a 9 de Maio, apresentou algumas alterações menores. A resposta não foi ao encontro de uma série de preocupações maiores. A Human Rights Watch receia que o parlamento submeta a lei à assinatura do presidente na próxima semana, sem que tenha havido um debate público genuinamente aberto e alargado.
A utilização da internet e das redes sociais por jornalistas, activistas cívicos, defensores dos direitos humanos e partidos da oposição tem vindo a tornar-se cada vez mais importante em Angola, como forma de contornar as restrições impostas aos meios de comunicação tradicionais. Num discurso dirigido ao partido no poder, a 14 de Abril, o Presidente Eduardo dos Santos declarou que a internet estava a ser utilizada para organizar manifestações não autorizadas para "insultar, denegrir, provocar distúrbios e confusão". Este discurso levantou receios de que, na verdade, a proposta de lei não se destina a combater a criminalidade na internet, mas antes a reprimir opiniões políticas e a organização política através dos meios de comunicação electrónicos.
Esta proposta de lei também faz parte de um padrão mais alargado de restrições às liberdades fundamentais. Em Dezembro de 2010, a Human Rights Watch manifestou a sua preocupação a respeito da nova lei dos crimes de segurança do estado que, entre outras cláusulas, criminaliza “o ultraje” ao presidente. Em Março, a Human Rights Watch documentou uma campanha de intimidação do partido no poder destinada a desencorajar a população de se juntar a uma manifestação contra o governo, inspirada por um apelo através da internet.
“Esta proposta de lei, que está a passar sem o devido debate público, pode vir a pôr em causa as liberdades fundamentais salvaguardadas pela Constituição de Angola de 2010,” alertou Bekele. “Isto não serve os interesses de um governo em busca de respeitabilidade internacional, sobretudo face às próximas eleições de 2012.”
Informação mais detalhada sobre artigos específicos da proposta de lei, e as implicações para os direitos humanos, encontram-se na nota explicativa que se segue.
Para mais relatos da Human Rights Watch sobre Angola, por favor visite:
http://www.hrw.org/en/africa/angola
Contextualização
Entre os elementos mais preocupantes da proposta de lei de combate à criminalidade no domínio das tecnologias de informação e comunicação figuram:
Pôr em risco a cobertura noticiosa independente de interesse público
No âmbito do crime de "gravações, fotografias e filmes ilícitos" (artigo 17º), qualquer pessoa pode ser multada ou detida pela divulgação electrónica de imagens, vídeos ou gravações de um discurso público sem o consentimento da pessoa em causa, mesmo que o material tenha sido produzido licitamente e sem que houvesse qualquer intenção de causar danos. Isto pode dissuadir os jornalistas de publicarem vídeos de manifestações públicas ou de violência policial, mesmo que tenham sido gravados num local público. Apesar de os indivíduos terem direito à protecção da sua privacidade, a violação da privacidade não deve ser objecto de qualquer sanção penal, excepcionado em circunstâncias verdadeiramente flagrantes, e nunca na ausência de intenção criminosa.
A proposta de lei também criminaliza as denúncias de boa-fé ao abrigo do crime de “espionagem” (artigo 25º), que impõe a pena de oito a 12 anos de prisão para quem por intermédio de um sistema de informação procurar aceder a informação classificada “para a revelar ou auxiliar outrem a fazê-lo," independentemente de constituir ou não uma ameaça à segurança nacional. Impõe a mesma pena para o acesso a informação que não é classificada mas que pode pôr “em perigo a segurança do Estado.” Estas normas podem facilmente ser usadas para dissuadir a prática do jornalismo de investigação, visto que um repórter terá de adivinhar se pode considerar-se que a informação em causa põe em risco a segurança do Estado, de alguma forma indefinida. Isto poderia levar o repórter a sujeitar-se à autocensura, ou até a ser penalizado, mais tarde, por riscos que não podia prever, disse a Human Rights Watch.
Além disso, há um agravamento das sanções caso as actividades sejam levadas a cabo em cooperação não apenas com governos estrangeiros, mas também com "organizações” ou “associações” estrangeiras. Isto poderia ser interpretado como incluindo organizações noticiosas de boa-fé, organizações de direitos humanos ou até a Nações Unidas.
Impor sanções apesar da ausência de intuitos criminais
A proposta de lei também está carregada de crimes que omitem o intuito criminal enquanto elemento necessário. A prova da intenção de cometer um crime é fundamental em quase todos os crimes em sistemas jurídicos por todo o mundo.
Por exemplo, se esta proposta de lei for aprovada, uma pessoa pode ser punida pela gravação e publicação de imagens ou vídeos produzidos licitamente sem consentimento (artigo 17º), até em circunstâncias em que o divulgador pode desconhecer que há ausência de consentimento.
Da mesma forma, ao abrigo do artigo 20º, a proposta de lei pune a incitação directa “e de forma pública” à prática de um crime através de um sistema de informação, sem especificar como elementos necessários a intenção de incitar, nem uma relação causal efectiva com a prática de um crime. O artigo 20º também pune o “enaltecimento” do autor de um crime que poderia criar "o perigo" de que um delito semelhante venha a ser praticado, sem especificar a intenção de incitar à prática de um crime semelhante ou qualquer forma concreta de medir o referido “perigo”.
Na sua generalidade, estas cláusulas poderiam permitir que as autoridades angolanas punam oradores públicos apenas por expressarem as suas opiniões, sem que o orador tenha de mostrar qualquer intuito criminoso, ou sem que haja qualquer relação causal tangível com danos efectivos à segurança pública ou nacional, afirmou a Human Rights Watch.
Sanções agravadas por crimes previstos em legislação anterior
A proposta de lei faz referência a uma série de crimes do Código Penal angolano, a Lei do Segredo de Estado de 2002, a Lei da Imprensa de 2006 e a Lei dos Crimes Contra a Segurança do Estado de 2010. No entanto, agrava substancialmente as sanções previstas para os mesmos delitos. Desta forma, esta proposta de lei parece estar destinada a tornar as comunicações electrónicas uma esfera com um policiamento mais duro do que qualquer outra forma de expressão. A Human Rights Watch opõe-se ao agravamento das sanções penais para estes delitos apenas com base no meio utilizado.
Por exemplo, ao abrigo de “Difamação, injúria e calúnia” (artigo 16º), a proposta de lei trata a difamação como um crime, o que já é o caso ao abrigo da Lei da Imprensa de 2006 e do Código Penal de Angola, mas agrava as sanções em um terço nos limites mínimo e máximo previstos no Código Penal. A Human Rights Watch opõe-se à responsabilidade criminal por difamação, que considera uma restrição indevida da liberdade de expressão.
Carta-branca às forças de segurança para busca e apreensão sem autorização prévia
O artigo 75º da proposta de lei confere amplos poderes de busca e apreensão de dados a “órgãos de defesa e segurança” não especificados, sem autorização prévia dos tribunais, em nome da segurança nacional. Isto representa uma porta aberta a buscas intrusivas e abusivas que podem comprometer os direitos dos indivíduos e restringir gravemente os direitos à liberdade de expressão e de acesso à informação.