Fernando Gonçalves Namora, de seu nome completo, era filho de António Mendes Namora e Albertina Gonçalves Namora. Nasceu em Condeixa, no dia 15 de Abril de 1919 e faleceu aos 69 anos de idade, no dia 31 de Janeiro de 1989. A infância, a juventude e a adolescência passou-as, no entanto, no nosso concelho, mais concretamente no Vale Florido (freguesia do Alvorge).
Muito do texto literário produzido, tem as marcas desse tempo em que formou a sua personalidade e granjeou os instrumentos inspirativos para uma obra monumental, que todo o mundo culto conhece e admira.
A sua obra, em termos de correntes literárias, evoluiu no sentido dum amadurecimento estético do “neo-realismo”, o que o levou a enveredar por caminho mais pessoal. Não desprezando a análise social, a sua prosa ficou marcada, sobretudo, pelos aspectos do burlesco, observações naturalistas e algum existencialismo.
O nosso biografado foi, sem dúvida, um escritor dotado de uma profunda capacidade de análise psicológica, própria de uma pessoa bem formada e muito sensível, e por isso capaz duma linguagem de grande carga poética. Escreveu poesia, romances, contos, memórias e impressões de viagem.
O poema “Terra” (que, a seguir, se transcreve) é apenas um exemplo, dos muitos que se poderiam apresentar, de alguém que viveu nestas paragens, conheceu bem as suas gentes, os seus modos de vida, os interrogou e reflectiu.
«Terra
Onde ficava o mundo?
Só pinhais, matos, charnecas e milho
para a fome dos olhos.
Para lá da serra, o azul de outra serra e outra serra ainda.
E o mar? E a cidade? E os Rios?
Caminhos de pedra, sulcados, curtos e estreitos,
onde chiam carros de bois e há poças de chuva.
Onde ficava o mundo?
Nem a alma sabia julgar.
Mas vieram engenheiros e máquinas estranhas.
Em cada dia o povo abraçava outro povo.
E hoje a terra é livre e fácil como o céu das aves:
a estrada branca e menina é uma serpente ondulada
e dela nasce a sede da fuga como as águas dum rio.»
Como outros jovens da região que estudavam frequentou o Liceu e a Universidade em Coimbra
Como alguns dos jovens de famílias mais abastadas desta região, Fernando Namora, aos 16 anos, já estava em Coimbra a estudar no Liceu José Falcão. Logo aí o jeito para a escrita se manifestou, tornando-se o Director do jornal académico Alvorada e escrevendo o seu primeiro livro, Almas sem rumo.
A partir de então, às tarefas ligadas aos estudos, juntou as de escritor e nunca mais parou.
Aos 19 anos de idade edita o seu primeiro livro de poemas, Relevos. Nesse mesmo ano, com o romance As sete partidas do mundo, ganha o prémio Almeida Garrett. A qualidade da sua escrita, ainda tão novo, é de imediato reconhecida e, ainda no mesmo ano de 1938, obtém o prémio Mestre António Augusto Gonçalves, de artes plásticas.
Dois anos mais tarde publica o livro de poemas Mar de Sargaços.
Em 1941, o seu livro de poemas “Terra” é integrado no “Novo Cancioneiro”.
No ano seguinte, Fernando Namora conclui a licenciatura em Medicina e abre consultório em Condeixa. Nesse mesmo ano, sai o romance Fogo na Noite Escura, editado pela colecção “Novos Prosadores”.
Um ano depois (1943) exerce a sua profissão de médico em Tinalhas, (Castelo Branco), onde escreverá a novela Casa da Malta (que só publicaria dois anos mais tarde). Nessa obra vêm ao de cima muitas recordações da casa de seus pais, como ele próprio confessa dois anos antes de morrer.
Efectivamente, dois anos antes do seu desaparecimento físico, o Jornal das Letras (de 5 de Janeiro de 1987) lembra a ilustre figura do nosso biografado. E o excerto, que a seguir transcrevemos, são mesmo as palavras de Fernando Namora, aos 67 anos, lembrando bem os tempos passados no nosso concelho e como influenciaram profundamente a sua obra literária.
O concelho de Ansião, e particularmente o Alvorge, pode ufanar-se do ilustre nome de Fernando Namora
«Às vezes persiste só um odor: resinas, urze, o chamuscar do porco na bárbara matança ritual…»
«(…) A adolescência melancólica, a juventude dramatizada. Mas os anos longínquos quase se me esvaziaram. Talvez tivesse precisado de os esquecer. Às vezes persiste só um odor: resinas, urze, o chamuscar do porco na bárbara matança ritual, os refugados impregnado quanta vizinhança havia, à hora da ceia – a ceia do par de velhos cujo conduto para a broa era uma cebola apurada na frigideira.
Tudo cheiros medulares e sugestivos. Às vezes um som: o vento nas ramarias, os sinos perdidos na charneca, os estalidos da madeira do tecto, o estrondo no castanheiro do fundo do quintal naquela noite de raios e coriscos, o piar nocturno de uma ave. Tudo sons que davam mistério às coisas. Às vezes uma imagem desgarrada, sobressaindo absurdamente na opacidade do tempo: uma certa viga ou uma certa fasquia do crescer vagaroso da casa dos meus pais, uma casa que era para eles um desagravo quase passional (aldeia de Vale Florido, nas bandas de Ansião, personagem de muitos dos meus poemas e de umas tantas páginas da Casa da Malta), os três moinhos no cabeço das Degracias, três exílios, três vigias sobre o mato ralo que nem às cabras metia cobiça.
Um cerro mais adiante, nos orvalhos matutinos, já havia sinais desse fabuloso “mar de água” com que a mulher adúltera da aldeia, mulher viajada, mulher sabida, nos desassossegava a imaginação, tanto como nos uivos distantes havia os pressentimentos de comboios, também eles fabulosos, salvo para os aldeões emigrantes que iam às vindimas à Bairrada. Imagens desgarradas, sim, mas imperecíveis: os formigueiros em pânico na rua da vinha, minha curiosidade insaciada, súbito um pastor e o seu cão no meu vadiar solitário, súbito a contadora de enredos nas descamisadas do estio (a arte das ficções foi ela quem primeiro mas incutiu), uma galinha degolada mas nela a morte correndo viva até à fulminação repentina junto do muro da eira (quanto o horror, qualquer horror, me queima de profunda desventura), súbito umas luvas brancas no dia da primeira comunhão e o castigo aplicado com método e deleite, por tê-las sujado de chocolate na merenda tradicionalmente oferecida pelos “Senhores do Palácio” – a vila era feudal!
… Eu passava na aldeia os meses de Verão. A bem dizer, tinha por companheiro o mestre Paulo. Não se fazia uso desse trato de “mestre”, mas depois no Alentejo, aprendi-lhe a expressiva adequação. Mestre Paulo, ele sozinho sem ajudantes, foi o obreiro, quanto a carpintarias, da tal casa de meus pais. Todo o madeirame que por lá se vê teve o afago das suas mãos, anos e anos de idas e vindas do longe onde morava até Vale Florido…
Além de mestre Paulo, a velha Florinda, já a atrás referida mas não nomeada. Chamavam-lhe a “russa”: os seus cabelos, como os da minha avó eram só neve. Sem parentela, um rebanho de quatro cabeças, nos montes baldios a ia procurar para lhe ouvir estórias de espanto. A realidade da aldeia, homens e bichos, nada eram ou eram ilusão: o real estava na fantasia de quem dela se quisesse servir. Rima a rima, Ti Florinda ensinou-me romances versejados, deu-me motes para a minha inventiva assim instigada. Fiquei sempre duvidoso da sua morte: quando menos se esperasse, ela iria repetir as ressuscitações dos seus heróis prodigiosos.
Com o tempo e o desaparecimento das pessoas acentuou-se o meu pendor para a solitude. Errava pelos montes, observando os moleiros e os pastores, decorava livros inteiros de poesia, recitando-os para mim próprio no quarto que dava para a rua da vinha».
«Também minha mãe foi, a seu modo, artista – e grande. “Pintava” belos painéis com rendas e trapos»
Numa entrevista concedida a Cunca de Almeida, em 1 de Março de 1985, Fernando Namora, a respeito dos seus tempos de Ansião, respondia assim:
«- Passei boa parte da infância e da adolescência em Vale Florido, na freguesia do Alvorge. Em “Nome para uma Casa” falo muito desses sítios, como já falara em “As Frias Madrugadas”. Eram ali as minhas férias. E no Alvorge exerceu a sua profissão de boticário um dos meus tios, Antero Mendes Namora, que foi a personagem fabulosa da minha juventude, homem de uma só peça, amante da música e da natureza, profissional de rara competência. Cada uma das suas cartas ou escritos eram peças literárias de alta craveira.
Também minha mãe foi, a seu modo, artista – e grande. “Pintava” belos painéis com rendas e trapos. Cada uma das suas colchas, de uma modernidade surpreendente, teria lugar em qualquer museu».
Como sua mãe, também Fernando Namora tinha algum jeito para as artes plásticas, embora não tenha desenvolvido grandemente esse seu dom.
Só se conhece uma única exposição individual de pintura, de Fernando Namora. Tê-la-á realizado em 1944, em Castelo Branco.
Em Outubro do mesmo ano, o Dr. Fernando Namora muda-se para Monsanto da Beira. Em 1945, publica a novela Casa da Malta.
Em 1946 passa a exercer o cargo de médico municipal de Pavia, no Alentejo. É nesse ano que publica o romance Minas de San Francisco, que no ano anterior, havia escrito em Monsanto.
Três anos mais tarde, vem a lume a primeira série da famosa e mediática obra Retalhos da Vida de um Médico, que obterá o Prémio Vértice. A adaptação desta obra a uma série televisiva e a sua edição espanhola, prefaciada por Gregório Marañon, dão-lhe projecção internacional.
Na sua obra passa em revista a nossa própria realidade humana, social e cultural
Em Retalhos da Vida de um Médico como em muitos outros textos, Fernando Namora passa em revista a nossa própria realidade humana, social e cultural. «Confronta-a com a de outros países, anotando em pormenor os aspectos que uma atenta e lúcida observação não deixa escapar: seja o quotidiano lisboeta, fixado em pormenores que sempre se ligam a um entendimento do mundo à sua volta, seja em redor das paisagens e gentes alentejanas (e muito belas se revelam as páginas de evocação de Castelo de Vide, Marvão, Portalegre ou Monsaraz), ou mesmo para falar dos problemas e questões levantadas sobre a literatura ou a crítica, enfim, a cultura no sentido mais universal, no diálogo vivo com intelectuais de outros quadrantes, o que se afirma nas páginas de Sentados na Relva é ainda (e sempre) uma visão realista de pretender dar do mundo e dos homens que se cruzam no seu caminho, no entusiasmo das ideias e das paixões mais sinceras, o retrato mais exacto e preciso nos contornos ou sentimentos que extravasam desse inalterável? discurso? literário. E por aí Fernando Namora se declara sempre implacável».
http://ansianensesilustres.blogs.sapo.pt/2035.html
Foto: Em Monsanto com a sua mulher no ano de 1945
http://fernando-namora.blogspot.com
ResponderEliminarespaço de divulgação do autor de 'O Rio Triste', oferece a todos os interessados, estudantes e leitores, uma ampla colecção de elementos gráficos e escritos, com destaque para as 1ªs edições de juventude, entre outras informações sobre os ciclos do seu percurso literário (de 1937 a 1988).