sábado, 25 de abril de 2009

A Memória de Jaime Galante na Faina do Bacalhau


Público

Em 1948, com apenas 16 anos, Jaime Galante experimentou pela primeira vez a aventura nos bacalhoeiros portugueses nas águas da Terra Nova. Ao fim de 25 anos de pesca do bacalhau, decidiu acabar de vez com uma vida marcada pela má alimentação e pela falta de higiene. Memória de um tempo que já não existe. Por Ângelo Teixeira Marques

O mar entrou cedo na vida de Jaime Galante Rodrigues, um pescador de Vila do Conde que passou 25 dos seus 71 anos na safra do bacalhau. Aos nove anos, quando teve de abandonar a escola para minorar a pobreza da família com dez bocas para alimentar, o pai já andava na safra do bacalhau, mas Jaime começou pela faina costeira. Em 1948, o pai entendeu que estava à altura do desafio. Aos 16 anos, embarcou em Lisboa no "Adélia Maria", um bacalhoeiro de Aveiro, com quatro mastros e um pequeno motor auxiliar.

Entrou com a categoria profissional mais baixa de todas as existentes a bordo: era simplesmente um dos "moços". Um membro "sem direito a nada", nem sequer a sentar-se à mesa junto dos demais cinquenta pescadores, motoristas e cozinheiros. E muito menos junto do topo da hierarquia, composto por "oficiais, capitão e imediato". Por ironia, estes tinham direito ao trabalho privativo de um "moço".

Um "moço" não ia à faina, mas a permanência a bordo significava uma carga de trabalhos, desde a limpeza à distribuição de refeições e, a parte mais dura, o labor no sal, no porão. Os navios zarpavam na Primavera para safras que duravam cerca de seis meses e iam carregados de sal para proteger, no regresso, o bacalhau pescado.

O porão tinha diversas divisões e era necessário transferir o sal de umas para as outras, à medida que o peixe ia sendo pescado e acamado. Jaime Galante lembra-se de um "moço" ter falecido "no espaço de um dia", com uma "pneumonia galopante" que suspeita ter sido causada pelo choque térmico entre um corpo quente pelo suor adquirido no porão e uma aragem fria apanhada no topo do barco. "Era um trabalho de escravo", sintetiza.

Aos 18 anos, Jaime ascendeu a pescador. As viagens para a Terra Nova duravam cerca de 15 dias e o tempo era passado a preparar os aparelhos para a pesca, a jogar às cartas, a alar as velas (para poupar o motor) ou a limpar o barco. "Arranjavam sempre algo para fazermos", diz. Chegados à Terra Nova, onde adquiriam o isco - "a sarda era o melhor, o pior as lulas-gigantes, demasiado rijas" - , principiava a saga da pesca. Às quatro da manhã, ouvia-se o "Louvado" - uma ladainha religiosa que funcionava como despertador. O pequeno-almoço era escasso. "Normalmente, um pão e algo com parecenças de café ou feijão com peixe", conta.

De súbito ouvia-se um grito - "tira o isco, corta o isco, vamos arriar!" - e eram despejados na água os botes à vela e remos, com uma mão-cheia de pescadores a bordo. Jaime Galante ainda chegou a utilizar a "linha de mão", que tinha somente dois anzóis, mas este apetrecho foi ultrapassado pelos mais modernos e produtivos "trole" e "zagaia". O trole era composto por uma linha com "seiscentos anzóis ou mais" que tinha de ser estendida por longos quilómetros. E aqui levantava-se uma dificuldade: com tantos botes na água, os pescadores tinham de arranjar espaço para todos. Logo, os últimos botes a entrar na água eram os que regressavam mais tarde ao ponto de partida. O retorno era sinalizado pelo içar "de uma bandeira preta formada por dois panos de serapilheira". Assim, ficavam no mar, "no mínimo, até às seis horas da tarde" e só depois é que a barriga era reconfortada.

Mas o trabalho não acabava com as capturas. Já no navio, os pescadores eram divididos por três mesas e o peixe ia passando "como numa fábrica": "Uns faziam trote, abriam a barriga [do peixe], outros tiravam as tripas e partiam a cabeça e os últimos escalavam". Depois de lavados, os bacalhaus iam para os porões onde estavam outros membros da tripulação a fazer "a salga".
Até Junho, a faina era passada na Terra Nova. Depois o barco arribava à Gronelândia, onde, devido ao frio, o bacalhau "era mais escuro e tinha menos possibilidade de se estragar". Gastava, por isso, menos sal, o que agradava sobremaneira a quem tinha de gerir a quantidade do conservante. Por causa do tempo gélido, nos finais de Agosto o barco deixava a Gronelândia e, "se não estivesse carregado, voltava à Terra Nova para acabar de encher [com pescado]". Muito trabalho e pouco descanso. Só quando dava a "brisa" [ventos tempestuosos] é que os músculos descansavam.

O terceiro naufrágio
Numa das viagens, Jaime Galante viu uma "coxa de uma vaca" a descongelar e quando, noite alta, regressou da "vigia" no leme, sentiu uma fome corrosiva. Juntou-se a meia-dúzia de "camaradas" mais chegados e, com a afiadíssima "faca de escala", tirou tiras de bife que fritou na "máquina que era a petróleo, mas funcionava a gasóleo" - uma espécie de minifogão. Só que os improvisados cozinheiros esmeraram-se no tempero ("colocámos um bocadinho de pimenta, alho...") e "o cheiro começou a espalhar-se" pelo barco. No dia seguinte, da peça de carne só restava o osso.

E, por causa da alimentação, Jaime Galante quase encabeçava uma rebelião. O barco já tinha Aveiro à vista, mas como estava totalmente carregado - tinha capacidade para " onze mil quintais" (cada quintal é equivalente a 60 quilogramas) o calado roçava o fundo do mar e a aproximação à costa ficou dependente de uma boa maré. O proprietário mandou ao encontro da embarcação uma lancha com "hortaliças, batatas, ovos e metade de uma vaca". Só que, na hora da refeição, os pescadores viram-lhes cair no prato "feijões e peixe amarelo feito em sebo". O mesmo cardápio dos últimos meses e que enfastiava a tripulação. "Que c...... é isto?", zangou-se Jaime Galante, que foi pedir meças ao capitão do barco e, após uma azeda troca de palavras, o pescador, forrado com a presença dos restantes camaradas, ameaçou o superior. Galante esteve em vias de ser preso, mas o dono da firma "não enviou a polícia".

Em 1968, o "Adélia Maria" naufragou, em virtude de um incêndio, e Jaime Galante transitou para uma embarcação maior, a "Capitão José Vilarinho", que dava trabalho a "mais de oitenta pescadores". Mas também este barco iria naufragar, abalroado por um pesqueiro canadiano, quando encetava a fuga a um ciclone. Neste caso morreram quatro membros da tripulação.
Finalmente, Jaime Galante, já como "mestre-salga", seria tripulante do "Vila do Conde", mas a sina dos naufrágios perseguia-o e também o barco com o nome da sua terra foi ao fundo, depois de um incêndio a bordo. O pescador deixou a faina do bacalhau de vez. E depois de uma passagem por Espanha, da participação numa cooperativa, comprou um "barquito" de pesca local com o qual ganhou o pão até se reformar. E aí verificou que a pesca do bacalhau "era uma ilusão": os que trabalhavam e arriscavam ganhavam "uma miséria".

Jaime Galante ficou, pelo menos, a conhecer todos os segredos do bacalhau e sentencia: "O nosso bacalhau vinha cinco ou seis meses espremido no sal. Depois era seco ao sol e quando ficava de molho crescia e as postas pareciam lascas. Hoje a salga dura um dia ou dois e, por isso, o bacalhau fica branco por dentro e parece palha".

Domingo, 21 de Dezembro de 2003

sexta-feira, 24 de abril de 2009

BOUDICCA a nobreza celta


Boudicca é conhecida nos anais de Roma como Boadicea. Era uma nobre que nasceu por volta do ano 30. Pouco se sabe de onde veio, mas alguns estudiosos acreditam que seu nome é uma homenagem à deusa da Vitória Boudiga, do panteão celta, dado por seus seguidores.

Ela se casou dentro da nobreza do povo Iceni, do sudoeste da Bretanha, por volta de 48, dando à luz a duas filhas que alcançaram a adolescência antes do falecimento de seu pai, por volta do ano 60. A partir de sua morte, ocorreram uma série de ataques de surpresa dos romanos a ela e à suas filhas, ultrajando a tripo dos Iceni. Boudicca finalmente liderou uma força composta por mais de cem mil guerreiros, numa rebelião maciça que deixou uma ferida à integridade do Império Romano.

História

Boadicea fazia parte da nobreza céltica. Os Celtas eram um povo guerreiro que habitava as Ilhas Britânicas e a Europa Ocidental desde o século V AC aproximadamente. Os romanos fizeram várias incursões infrutíferas à Gália ao longo dos séculos e os celtas eram admirados por seu destemor e coragem.

Um ajuntamento de forças célticas saqueou Roma em 410, causando o colapso do Império que, de fato, já se encontrava dividido.

O que mais aterrorizava os combatentes romanos diante das forças célticas era que homens e mulheres combatiam lado a lado, sem distinção de honra ou valor e muitos menos, quanto ao vigor na batalha.

Mesmo assim, Roma sentiu-se extremamente ultrajada pelo fato da rebelião dos Celtas ser liderada por uma mulher.

César

Julio César invadiu a Bretanha duas vezes, primeiro em 55 AC e depois novamente no ano seguinte, obtendo então a submissão de seis poderosas tribos do leste, entre os quais, as tribos dos Iceni. Em virtude de outras questões relativas à ocupação das Ilhas do Canal e dos combates existentes contra os gauleses, deixou aquelas tribos governando-se a si mesmas, embora passassem a manter relações comerciais inclusive com a Gália Romana, pacífica e latinizada. César jamais retornou para a região e a vida retornou à normalidade pelos próximos cem anos.

O Retorno de Roma

Prasutagus, marido de Boudicca, era o provável rei dos Iceni quando Roma retornou em 43, com Claudius. Claudius enviou cerca de 60 mil homens não apenas para invadir a Bretanha, mas também para colonizá-la, depois de investigar e pesquisar sobre as vitórias e fracassos das incursões anteriores.

Os Iceni foram assim novamente subjugados e Prasatugus foi mantido no trono como rei-vassalo de Roma. Desta forma, havia um governante local dirigindo-se diretamente ao seu povo e suas terras, subordinado aos interesses de Roma. Dessa maneira, contavam com apoio militar, um estrutura de taxas e coletas de impostos e educação nos moldes da existente no Império. No fundo, tratava-se de uma escravidão branda.

Como disse Calgacus, líder dos caledônios, que liderou a rebelião 20 anos depois de Boudicca:

“Eles devastam tudo e criam a desolação, chamando a isso de paz”.

Haviam vários regentes submetidos à Roma a leste e ao sul da Bretanha. O País de Gales se submeteu apenas depois de 30 anos de violentos combates. E quanto mais ao norte os romanos se dirigiam, mas difícil se tornava controlar o povo. No extremo norte da ilha, cerca de 60 anos após Boudicca, os romanos tentaram conter os caledônios construindo uma muralha (Vallum Hadrianus), mantendo-os distante dos territórios romanos. O que mais tarde se tornou a Escócia permaneceu livre, uma prova de que jamais estiveram na Irlanda. O mais próximo que chegaram foi até a Ilha Mona (Anglesey), que era um santuário druídico renomado, destruído pelos romanos sob o governo de Suetonius Paulinis, na mesma época em que Boudicca reunia as suas forças.

A Rebelião

Depois de casar com Prasutagus, por volta do ano 48, Boudicca se tornou a rainha dos Iceni. Deu à luz a duas filhas, de nomes desconhecidos. Acredita-se que estavam na adolescência por ocasião da morte de seu pai entre os anos de 60 e 61. Boudicca então se tornou a regente dos Iceni e guardiã da herança de suas filhas.Prasutagus deixou um desejo ao morrer. Deixava terras e possessões pessoais, bem como quantias em dinheiro para o Imperador (na época, Nero), como era requerido dele como vassalo de Roma. Mas também deixou dinheiro e algumas propriedades para sua esposa e filhas. Ao sacrificar-se agindo assim, pensava assegurar a continuidade o pagamento de taxas e tributos à Roma durante um bom tempo. Acreditando que havia salvaguardado os interesses de seus descendentes, Prasutagus morreu despreocupado.

Porém, após a morte de Prasutagus, representantes da administração tributária de Roma foram enviados à Bretanha, acompanhados de guardas para contestar seu testamento. Segundo as leis romanas, não poderia deixar bens, propriedades e recursos à família sem o direto consentimento do imperador.

Boudicca foi tornada inteiramente responsável por todos os débitos junto a Roma. Por não ter como honrá-los, Roma não poupou esforços para utilizá-la como exemplo. Foi feita prisioneira e açoitada em público, enquanto que suas filhas foram levadas para longe e violentadas pelos soldados romanos. A isso chamavam de “a Lei Romana”. Nenhum crime havia sido cometido pelos Iceni aos romanos além do fato de Prasutagus ter distribuído alguns de seus recursos às suas filhas...

Ela recuperou suas filhas e trazendo-as novamente para o seu povo. Então, várias pequenas insurreições e rebeliões começaram a acontecer primeiramente ao sul, particularmente pelos Trinovantes, libertando seus parentes e familiares que passaram a engrossar as suas fileiras. Eles faziam parte de uma tribo que não havia se submetido aos romanos e que se colocou à disposição dos Iceni para responder ao ultraje recebido. E foi dessa maneira que as duas tribos que eram inimigas entre si por séculos estabeleceram uma aliança para se juntarem a Boudicca quando ela conclamou à guerra.

O Governador da Bretanha, Suetonius Paulinus estava justamente acabando com uma rebelião que seguia uma profecia dos druidas que falava de paz na ilha, quando uma nova rebelião se instalava cerca de 300 milhas adiante. Assim que terminou de aniquilar todos os seus habitantes e destruir os seus santuários, levantou acampamento e dirigiu as suas tropas em seguida.

Acredita-se que Boudicca reuniu cerca de cem mil pessoas quando liderou o primeiro ataque a Camulodunum Colônia (Colchester), uma colônia distante da administração romana e de suas famílias. No interior da cidade, uma quinta coluna de rebeldes assegurou que o ataque ocorreria sem aviso ou problema. Os combates duraram alguns dias, tempo suficiente para que mensageiros corressem a Londinium (Londres) e informassem o Procurador, uma vez que o Governador estava fora de alcance. Este respondeu enviando apenas 200 homens, que foram rapidamente abatidos na batalha.

Tácito cita a religiosidade romana e britânica que previu a desgraça futura de Roma:

“Apesar de tudo, sem nenhuma causa evidente, a estátua da Vitória em Camulodunum permanecia prostrada e de costas para o inimigo, como um presságio a ser refletido. Mulheres profetizavam a destruição em línguas estranhas e diz-se que foram ouvidas inclusive no Senado. Os combates foram tão fortes que a cidade parecia um cemitério e o Tamisa, um rio de sangue. E quando a maré baixava, corpos surgiam fantasmagóricos de suas águas. Para os bretões, esse sinal eram um alento; para os romanos, apavorante. Os soldados veteranos de Roma mantiveram-se fechados por mais dois dias, trancados no templo de seus deuses. Desempenhando a função de agricultores, estavam pouco equipados para lutas tão ferozes quanto aquela.”

Foi quando Boudicca se moveu. Camulodunum era uma cidade destruída e seus habitantes estavam totalmente fora de combate.

A IXª Legião Hispana, guiada por Petilius Cerialis, foi enviada para Camulodunum. Rapidamente se equipou e deslocou para a região do conflito trazendo cerca de cinco mil homens, mas foi emboscado por um destacamento que os esperava a norte de Camulodunum. A infantaria foi totalmente dizimada; Petilius e sua cavalaria se retiraram mais para norte e a rebelião rapidamente se espalhou.

Após as notícias da revolta, o Procurador Decianus partiu imediatamente de seu gabinete em Londres, levando tudo o que podia, inclusive os seus próprios funcinários, deixando a cidade sem administração.

Suetonius, enquanto isso, marchou rapidamente para Londres, inspecionando a cidade com um destacamento. De alguma maneira, evitara a chegada de Boudicca de Camulodunum, conduzindo uma legião inteira por cerca de 400 km, esperando encontrar apenas ruínas pelo caminho. Nessa época, Londres era uma cidade burguesa, com seus negócios e feiras espalhadas por toda a sua extensão. Não era uma cidade particularmente fortificada, uma vez que sua principal atividade era realmente os negócios e seus cerca de 30 mil habitantes, romanos ou não, sentiam-se em casa. Apesar de Suetonius ter chegado a tempo, abandonou prontamente a cidade, pois sabia que não poderia ser defendida.

Tácito descreve a cena em seus anais:

”Ele decidiu sacrificar a cidade para salvaguardar a situação geral. Sem se deixar levar pelos pedidos e lágrimas daqueles que imploravam por sua ajuda, ele deu o sinal para partir, levando a sua coluna e todos aqueles que quisessem acompanhá-lo. Aqueles que não estavam preparados para a guerra, seja por seu sexo, idade ou porque eram muito presos aos seus negócios para os abandonarem, acabaram sendo mortos pelo inimigo.

Boudicca e suas forças chegaram a Londinium pouco depois da partida de Suetonius e arrasaram inteiramente a cidade, não deixando pedra sobre pedra.”

Depois de deixar Londres, Boudicca se voltou para noroeste para Verulamium (Santo Albano), uma cidade pouco menos populosa que Camulodunum, mas composta inteiramente de bretões simpatizantes ao regime romano. Suetonius convocava agora a IIª Legião Agusta do sudoeste para reunir-se às suas próprias legiões. Mas parece que não compareceram a tempo, contidas por seu comandante Poenius Postumus. Sem eles, Suetonius reuniu rapidamente cerca de dez mil homens compostos dos destacamentos da XXª Legião que o acompanharam à Ilha Mona, da XIVª Legião e dos auxiliares disponíveis na área que poderiam ser reunidos o mais rapidamente possível. Supõe-se que assim tenha reunido cerca de 200 mil homens.

Os habitantes de Verulamium receberam orientações de Boudicca assim que ela partiu de Londres. Antes que ela chegasse, a população evacuou a cidade levando consigo todos os seus pertences. Ainda assim, assim que o exército atravessou a cidade, ateou fogo em tudo e em todos aqueles que se recusaram a seguir as suas ordens. Mas ainda não foi dessa vez que Boudicca conseguiu atacar os exércitos de Suetonius.

A Batalha Final

Suetonius buscava uma região com um terreno particularmente favorável para a batalha, que pudesse favorecer o trabalho de seus soldados, tendo que lutar com o seu inimigo vindo exclusivamente de uma frente. A localização precisa deste local nunca foi determinada, porém, acredita-se que tenha sido a oeste de Middlands. Tácito observa que os bretões vinham para a batalha com todo a sua família e pertences, acreditando realmente que poderiam conquistar a vitória e restaurar a paz. Pergunta-se porque traziam toda a família para as frentes de batalha. Talvez fosse para mantê-los seguros de ataques furtivos dos romanos contra eles, evitando ainda que fossem feitos cativos ou que os romanos lhes tomassem suas posses.

As duas forças se encontraram e se prepararam para a batalha. Para essa batalha, Boudicca é descrita com uma mulher cansada e com alguns ferimentos, conduzindo um clã de tártaros armados até os dentes e com uma aparência terrível (Tácito). Os celtas costumavam ir para a batalha com seus tambores, vestidos com roupas próprias para a guerra, brandindo lanças, espadas e armas roubadas. A pele era pintada de azul para intimidar o inimigo. Pode-se imagina a reação provocada nos soldados romanos bem treinados, mas não acostumados a enfrentar inimigos com esse aspecto. Diz-se ainda que os comandantes falavam das possibilidades da vitória, convencendo que poderiam vencer, antes que Boudicca fizesse o mesmo e liderasse finalmente suas tropas para a batalha.

Os romanos, em contrapartida, permaneciam naquela clássica formação de falange, seus escudos acima das cabeças servindo-lhes de proteção contra as lanças dos bretões. Assim que o inimigo estava ao alcance, Suetonius deu a ordem de formarem uma cunha, quando arremessaram as suas lanças e dardos. Em seguida, avança a infantaria auxiliar, sempre em ondas. Com esse ataque, o coração da tropa dos bretões que havia avançado primeiramente jazia morto e o caos se instalava na retaguarda bretã. Porém, os romanos avançaram ainda a sua cavalaria pelos flancos, buscando alcançar justamente a retaguarda bretã, onde estavam suas famílias e era considerado o ponto mais vulnerável de suas defesas.

Por fim a infantaria cercou as forças de Boudicca, deixando-a sem alternativa a não ser o combate. E muitos realmente acabaram morrendo. A partir dessa batalha, muitas outras rebeliões se sucederam.

Tácito diz que “para este combate havia cerca de 80 mil bretões e que apenas cerca de 400 soldados romanos foram mortos. A tradição diz que Boudicca sobreviveu à Batalha Final apenas para retornar ao lar e envenenar-se. É pouco provável que Nero tivesse clemência em seu caso ou de suas filhas. Se Boudicca tivesse sobrevivido e sido capturada, seria exibida como um troféu por Suetonius, em Roma, submetida então a horrores indescritíveis e por fim, levada a ser executada pelos gladiadores na arena”.

Cássio Dio sugere que tenha sido queimada como heroína, como é do costume dos celtas.

Conseqüências

Aqueles que foram capturados pelos romanos foram “vingados pelo fogo e pela espada”, de acordo com Tácito. O historiador diz ainda que muitos bretões deixaram de semear as suas plantações antes de deixarem as suas terras e assim, quando retornaram, muitos morreram de fome. Isso nos sugere que a rebelião tenha durado cerca de um ano.

Em várias localidades, muitos ainda permaneceram lutando, porque nada mais tinham a perder.

Fala atribuída a Boadicea (Tácito)

Agora, não sou apenas uma mulher de ascendência nobre, mas principalmente uma pessoa que se vinga pela perda da liberdade, pelo meu corpo açoitado, pela castidade ultrajada de minhas filhas. O desejo romano foi tão longe que nenhuma pessoa, independente de sua idade ou virgindade, permanece despoluída. Mas os céus estão do lado da vingança justa. Uma legião que se atreveu a lutar já pereceu; o restante está se escondendo nos campos ou tentando escapar ansiosamente. Sua força de vontade não sustenta o clamor de tantos milhares, muito menos de nossos ataques. Se você ponderar as forças de nossos exércitos, você verá que num combate você deve conquistar ou morrer. Esta é a responsabilidade das mulheres, pois para os homens, resta permanecerem vivos e se tornarem escravos.

Henrique Guilherme Wiederspahn, ESQUILO FALANTE
http://www.arteantiga.org/henrique/artigo02.php
boudi

foto
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Boudiccastatue.jpg

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Marina Tsvetáieva. Estenógrafa do ser


Os textos autobiográficos de Marina Tsvetáieva equivalem a ciclos sucessivos no purgatório e no inferno: a única interrupção possível é a morte, geralmente dolorosa e trágica. No caso da poeta russa, nascida em 1892, o fim foi o suicídio aos 49 anos incompletos, depois de uma seqüência de exílio, de fome, de perdas familiares, de frio e de penúria provocada tanto pelas frustrações amorosas quanto pela política. Impressiona que no longo sofrimento da poeta, considerada por Vladimir Maiacóvski "demasiado feminina", tenha podido surgir uma obra tão extraordinária, marcante por versos elípticos e metáforas surpreendentes, mesmo em tradução: "Sequer quero o buraco / Da orelha, e o olhar confuso. / Ao Teu mundo insensato / Só digo que – recuso".

Nas confissões reunidas em Vivendo sob o fogo (Martins, 763 páginas, R$ 83), com base em cartas e páginas de diário selecionadas pelo crítico Tzvetan Todorov, fica-se diante de um moderno Livro de Jó no qual a redenção parece menos importante do que a presença do mal e a força da esperança. Deve-se à tradutora Aurora Fornoni Bernardini, que já preparara uma antologia bilíngue de poemas em Indícios flutuantes (2006), o aparecimento em português dessa obra em prosa. Praticamente não há uma só página feliz ao longo da autobiografia montada a partir da seleção de dezenas de volumes. Em vários momentos, Marina Tsvetáieva é lírica e lancinante ao falar do seu sofrimento e das suas paixões, que a levam a extremos: "De um modo geral, detesto os literatos; para mim, cada poeta – vivo ou morto – é um protagonista de minha vida. Não vejo nenhuma diferença entre um livro e um ser humano, um pôr-do-sol e um quadro. – Tudo o que eu amo, amo com o mesmo amor". Nem toda confissão, no entanto, pode ser considerada criação literária – é o caso da carta que a poeta escreve para o poderosíssimo Lavrenti Béria, chefe do Comissariado do Povo para Assuntos Internos (NKDV), o serviço secreto e de segurança responsável, entre várias atividades, pela repressão política, pelas execuções extrajudiciais e pelo sistema de trabalho forçado nos gulags.

A poeta faz um apelo pela vida do marido, Sergei Efron, e pela filha do casal, Ariadna, ambos detidos em outubro e agosto de 1939, respectivamente. Inicialmente alistado no Exército Branco (ou seja, em oposição aos bolcheviques e aos ideais da Revolução de 1917), o militar foi em seguida cooptado pela espionagem comunista e esteve envolvido no assassinato de um agente soviético na Suíça. Em tom comovido e patético, a poeta procura explicar àquela máxima autoridade, que punia os "inimigos do povo", o drama de consciência de toda a sua família, em dimensão de tragédia: porém, cometido o "erro fatal" de haver participado do movimento meio monarquista e meio democrata contrário ao Exército Vermelho, como justificar a inocência de seu marido? O sistema repressivo já havia reduzido Sergei Efron a um homem sem ideais, atormentado por sua ambigüidade e fraqueza moral. Ele será fuzilado em 1941, pouco depois do suicídio de Marina Tvestáeva. A filha, também acusada de espionagem e "atividades anti-soviéticas", foi processada em 1939 e padeceu oito anos de "reeducação pelo trabalho".

A morte da mãe da poeta, tuberculosa, aos 37 anos, e a morte de uma filha mais nova, Irina, em 1920 – por maus tratos infligidos num abrigo para crianças – foram marcos do destino mórbido da poeta. Porém, outra seqüência de episódios de muita intensidade já havia também começado: a dos casos extramaritais de Marina Tsvetáieva com vários homens, a exemplo de Ossip Mandelstam, e também com a poeta Sofia Parnok, que tiveram impacto sobre sua obra. Muitos ciclos sentimentais, nunca paradisíacos, começaram e terminaram, sempre tocados pelo suplício. A atração que a autora de Psiquê (1923) sente por tantas pessoas – nem todas chegam de fato a ser suas amantes – forma o núcleo poético das suas confissões: é nessa dimensão amorosa que ela mais exibe o seu talento. Numa carta para o escritor Aleksandr Bakhrakh, na qual este toma conhecimento de ser ex-amante da poeta, ela conta que está amando outro (no caso, Konstantin Rodzevich, oficial do Exército Vermelho!), e conclui: "Terei deixado de amar você? Não. Você não mudou e eu não mudei. Só mudou uma coisa: minha fixação dolorosa em você. (...) Minha hora com você terminou, resta minha eternidade com você. Oh, demore-se um pouco nela!"

São as atrações passionais (ou "idílios cerebrais", como prefere) que elevam as anotações autobiográficas de Marina Tsvetáieva a um patamar só alcançado por seus poemas. Vivendo sob o fogo procura demonstrar, justamente, a superioridade da prosa da escritora russa, idéia que contraria a opinião de especialistas como Charles Simic e Jamey Gambrell, ainda que reconheçam a dificuldade e densidade lingüística dos poemas. Na confissão amorosa, ela se transformava na "estenógrafa da vida", sempre atenta para os acontecimentos mais presentes e mais tumultuados, fosse a sua pobreza material ou uma carta recebida há pouco. Deve-se recordar que, embora escritas em diversas formas, essas confissões tiveram início por uma razão de identidade literária: os diários da russa Maria Bashkirtseff (1858-1884), que morreu enferma aos 25 anos. E, no seu febril esforço de transmitir os eventos íntimos que lhe transtornavam, Marina Tsvetáieva procurava nos outros a melhor inspiração para obra confundida com a vida: por isso, numa anotação de 1919, declara que "o poema é o ser: de outra forma é impossível".

Tão precoce e constante como a idéia do suicídio é a presença da política na obra de Marina Tsvetáieva. A Revolução de Outubro foi seguramente o evento mais catastrófico para a poeta, e gerou uma situação impossível para sua família. Tanto os revolucionários quanto o regime que se consolidou exigiram dela uma definição que a poeta nunca esteve em condições de alcançar: seus temas eram a plenitude e a totalidade. Mesmo o fato de ser russa, segundo sua concepção, importava pouco: ser poeta, para ela, apagava as marcas da nacionalidade e a transformava num ser absoluto. Mas a Revolução varreu tudo: seu casamento e mesmo o destino das filhas. Numa carta de 1921 ao marido, ao comentar a morte de Irina, avalia que a filha "era uma criança muito estranha e, quem sabe, incurável". Mas admite em seguida: "Claro, se não houvesse a Revolução". Entre pão e céu – e também entre a falta e pão e o céu inalcançável – se posicionou Marina Tsvetáieva, cuja obra segue suspensa no lugar que só ela ocupa.
http://jbonline.terra.com.br/editorias/textosdoimpresso/jornal/ideias/2008/09/27/ideias20080927007.html

sábado, 18 de abril de 2009

Em busca da primeira edição de 'O retrato de Dorian Gray'


A Biblioteca Britânica estima em 9.000 o número de livros extraviados e roubados das suas prateleiras

EFE / EL PAÍS – Londres / Madride - 17/03/2009

Mais de 9.000 livros extraviaram-se na Biblioteca Britânica, entre eles os tratados renascentistas de teologia e alquimia, um texto de astrologia medieval, assim como primeiras edições. A Biblioteca não crê, sem dúvida, que alguém os roubou, senão que talvez estejam perdidos entre os 650 quilómetros de estantes desse centro, informa hoje o diário The Guardian.

Um dos livros que se perdeu a pista é o titulado Da Usura Legal e Ilegal dos Cristãos, do teólogo alemão do século XVI Wolfgang Musculus, que a biblioteca valoriza em 22.000 euros. Outros são uma Carta de Astrologia publicada em 1555 de que é autor o famoso filósofo judeu-cordovês Maimónides (1135-1204), primeiras edições do O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, e Canzoni, do poeta norte-americano Ezra Pound. Também desapareceu uma edição de luxo do livro de Adolf Hitler A Minha Luta, que se publicou por motivo dos 50 anos do ditador alemão.

Segundo Jennifer Perkins, da Biblioteca Britânica, os livros consideram-se extraviados quando um leitor os reclama e não aparecem nas estantes em que deveriam normalmente estarem. Os maiores tesouros da Biblioteca, entre eles a Magna Carta, guardam-se numa galeria especial submetida a controles de conservação e segurança extraordinários.

Muitas das perdas produziram-se justamente antes ou depois de 1998, ano em que se trasladou a colecção desde o Museu Britânico para um moderno edifício cerca da estação de St. Pancras.

No passado mês de Janeiro, um coleccionador iraniano chamado Farhad Hakimzadeh foi encarcerado por levar mapas, ilustrações e páginas de vários volumes valiosíssimos dos fundos dessa biblioteca.

EL PAÍS

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Edgar Allan Poe revisitado


Sete autores reinventam os contos do autor
O livro inclui também ilustrações de Harry Clarke

Joana Rei Madride

Quando se trata de falar de Edgar Allan Poe, as palavras começam a ficarem curtas. Pai da novela negra e da ficção científica, génio da história policial e de terror, a sua marca na literatura é profunda e inegável. No ano em que se celebra o bicentenário do seu nascimento, as editoras apressam-se em sacar as obras que renderam homenagem ao seu talento. A mais recente apresentou-se ontem, em Madride, e recolhe sete dos seus contos em sete novas versões.

'Poe', da editora 451 editores, é um reinvento dalguns dos contos do autor. "As versões que mais gosto são as que destronam o original, as que o fazem em pedaços e recreiam, a partir das suas cinzas, um monstro novo. Este foi o repto que propusemos a s escritores", conta Fernando Marías, o editor.

Eugenia Rico e Luis Alberto de Cuenca foram dois dos autores que aceitaram o repto. Ele reconstruiu 'O Corvo' e ela 'O Gato Negro', duas das obras mais emblemáticas de Poe. "Dei-me conta de que me fascino pela dobragem, pelo espelho, assim que quis reinventar o conto a partir dos olhos da mulher, morta e emparedada", recorda Eugenia Rico. E, assim, o gato converteu-se em gata. Una gata negra que fala de "uma história de maus-tratos, de uma mulher que sofre e que não acredita que o homem a quem ama se está transformando num monstro".
"Intentei sentir o que sentiu Poe ao escrevê-lo, o que é muito difícil"

A versão de 'O Corvo' de Luis Alberto de Cuenca é mais pessoal: "Intentei sentir o que sentiu Poe ao escrevê-lo, o que é muito difícil. Mas na hora a ausência da amada morta e o meu primeiro amor morreu num acidente de carro. Assim que não tive que fazer nada mais que rememorar, destruir o modelo e voltar a construí-lo", explica o autor.

Os dois escritores unem-se a Mario Cuenca Sandoval, com 'O coração delator'; Espido Freire com 'Ligeia'; José Luis de Juan con 'A queda da casa Usher'; Montero Glez con 'O mistério de Marie Rôget' e a Pablo de Santis com 'A carta roubada' para dar vida a este novo 'Poe'.

Escritor de pesadelos

Em comum, têm a admiração por um autor que marcou o seu percurso como leitores e escritores. "Poe formou-nos a todos, aos bons, aos maus, ele foi o grande magma", diz Eugenia Rico.

O livro é a soma da visão única de cada autor sobre a obra de Allan Poe. Dos seus monstros, dos seus imaginários e, sobretudo, dos seus pesadelos. "Há muitas maneiras de matar um homem. Uma delas é não deixá-lo dormir. Estou convencida de que não morre por cansaço, mas porque não pode sonhar. Isto é o que é a arte. Mas Poe é distinto. Poe tem pesadelos, a sua literatura é uma espécie de catarse", explica Eugenia Rico.
"Os livros de Poe são pesadelos comuns à humanidade, que ele tem as brânquias de contar"

Luis Alberto de Cuenca segue a mesma linha de pensamento, uma sensação que se lhe entranhou no espírito quando leu 'O Barril do amontillado'. "Foi o primeiro livro de Poe que leu, uma edição de 1859, e sentiu que tudo o que lia já o tinha sonhado. Os livros de Poe são pesadelos comuns à humanidade, que ele tem as brânquias de contar", diz.

"A própria vida de Poe era um pesadelo. Não há nenhuma história feliz na sua obra. Era um homem atormentado, alcoólico e viciado em drogas, um ser autodestrutivo. Por isso escrevia como escrevia", continua Fernando Marías.

A edição de 'Poe' completa-se com os desenhos de Harry Clarke, ilustrações que acompanham cada conto e que dão razão a todos os que os intitulam de pesadelos. Duzentos anos depois do seu nascimento, 'Poe' é uma mirada mais ao universo negro do escritor norte-americano, outro regalo para os seus seguidores, para que possam seguir submergindo-se nesses pesadelos dos quais não querem despertar.

EL MUNDO

domingo, 12 de abril de 2009

Rimbaud, para lá da sua lenda


As cartas inéditas do poeta, quase umas memórias, descobrem a sua faceta mais íntima

ELSA FERNÁNDEZ-SANTOS – Madride – 20/03/2009

Para Albert Camus era "o maior de todos", e Patti Smith considerava-o "o primeiro poeta punk". A Arthur Rimbaud (1854- 1891) bastou-lhe um livro, uma temporada no inferno, para converter-se em mito. Tinha 18 anos e pouco depois decidiu que a literatura morrera para ele. Queria viver todas as vidas. E, apesar de morrer aos 37 anos dum cancro de ossos, quase o conseguiu. Prometo ser bom: cartas completas (Barril & Barral) reúnem a correspondência completa do poeta. Missivas autobiográficas que revelam os medos e anseios na desesperada voz de um homem condenado a errar, que viajou incansavelmente, foi professor, mendigo, explorador, comerciante, traficante de armas e até membro de um circo. A desamparada fuga de um poeta cujas consignas visionarias – "Eu sou outro", "Há que ser absolutamente moderno", "A verdadeira vida está ausente" – converteram-no num grande mito da rebeldia adolescente. Longe dessa imagem, a sua correspondência, inédita até agora em Espanha, descobre outro Rimbaud. Mais íntimo e longe da lenda.

Inquieto, irascível e insensato, também cresceu, perdeu e assentou a cabeça

"De que servem estas idas e vindas, estas fatigas?", escreve em 1883

O livro inclui o 'dossier' com o julgamento pelo disparo ao seu amante, Verlaine

"Enfim, nossa vida é miserável, uma miséria eterna. Para que vivemos?"

Inquieto, irascível e insensato, também cresceu, perdeu e assentou a cabeça. Em 1883 confessa aos seus o desejo de ter uma família: "Isabel [a sua irmã] equivoca-se com a sua decisão de não se casar se alguém sério e experimentado se apresentasse, alguém com um futuro. A vida é assim e a solidão é má coisa. Acho insignificante o estar casado e ter uma família. Mas estou condenado a errar [...] De que servem estas idas e vindas, estas fatigas, estas aventuras junto a raças estrangeiras, estas línguas com as que se enche a memória e estes sofrimentos sem nome se não posso, passados alguns anos, descansar num lugar que goste, encontrar uma família e ter um filho com o qual possa estar, passar o resto da minha vida, educando-o como se quer, criar e armar a instrução mais completa que alguém possa esperar, e que o veja converter-se num engenheiro prestigioso, um homem rico e poderoso graças à ciência?".

E em 1889, o poeta mostra um apego familiar impróprio do mito: "Minha querida mamã, minha querida irmã: ao mesmo tempo que me desculpo por não escrever-lhes mais amiúde, aproveito para desejar-lhes um feliz ano 1890, uma boa saúde. Ando muito ocupado e comporto-me o melhor que sou capaz enquanto me aguento muito, muito. Recebo também poucas notícias vossas. Sede mais prolixos e não duvideis que sou vosso servidor".

Para trás ficam a raiva e o entusiasmo das suas cartas a Paul Verlaine, amante, que cansado da sua jovem e grávida mulher foge com ele e lhe chama "o homem das solas de vento". A relação de Verlaine e Rimbaud não tardou em converter-se, tal e como definiu o próprio poeta, nas de "um marido infernal e uma virgem louca". Em Julho de 1873 escreve: "Volta, volta, querido amigo, amigo único, volta. Prometo ser bom. Se me mostrei desagradável contigo, foi apenas uma brincadeira; ofusquei-me, arrependo-me disso mais do que serás capaz de imaginar. Volta, e tudo se esquecerá totalmente. Que desgraça que hajas tomado a sério esta brincadeira! Não paro de chorar desde há dois dias. Volta. Sê valente, querido amigo. Nada está perdido todavia. [...] Não me esquecerás, não é verdade? Não, não me podes esquecer, eu levo-te sempre comigo".

Ademais das cartas, Prometo ser bom (que na segunda-feira se apresenta em Madride numa jornada no Centro Cultural Moncloa que inclui um recital de poesia, um concerto, uma mesa redonda e a projecção dum documentário) reúne o Dossier de Bruxelas com as declarações e os interrogatórios sobre o disparo a Paul Verlaine, as cartas da sua irmã Isabel e da sua mãe e um artigo, de cuja autoria não se sabia até 2008, publicado com o pseudónimo de Jean Baudry numa revista em 1870.

A vida deixou a sua impressão no poeta dos olhos azuis ("Porto-me bem, mas o cabelo encanece-me por minutos. Faz tanto tempo que isto sucede que temo que a minha cabeça pareça agora a de uma borla de maquilhagem. Resulta-me desoladora semelhante traição do couro cabeludo, mas que fazer?"). Até que em 1891, meses antes de lhe amputarem a perna carcomida pelo cancro de ossos que o matará, pede à sua mãe que lhe envie umas meias para o aliviar. "Encontro-me mal. Tenho na perna direita varizes que me fazem sofrer muito. [...] Faz-me este favor: compra-me um remédio para as varizes, para uma perna longa e magra. [...] A má alimentação, os alojamentos insalubres, as roupas demasiado ligeiras, os problemas de todo o tipo, o aborrecimento, a raiva permanente no meio de negros tão imbecis como canalhas; tudo isto ataca profundamente a moral e a saúde em muito pouco tempo. Uma pessoa envelhece muito rapidamente aqui, como em todo o Sudão".

Já com a perna amputada, num hospital de Marselha, incapaz de dormir e descansar por causa das dores, escreve à sua irmã Isabel: "Minha querida irmã: Não me escreves. Que se passa? A tua carta assustou-me, gostaria de ter noticia tuas. Espero que não sejam novos problemas, já temos bastantes! Não deixo de chorar dia e noite, sou um homem morto, aleijado para a vida. [...] Não sei o que fazer. Tudo isto me põe louco: não consigo dormir nem um só minuto. Enfim, a nossa vida é miserável, uma miséria eterna. Para quê vivemos? Envia-me notícias".

EL PAÍS

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A paixão em Marina Tsvetáieva


Tradutora da antologia ‘Vivendo sob o fogo’ comenta vida e obra da poeta russsa

Douglas Diegues Escritor


A versão brasileira de Vivendo sob o fogo, de Marina Tsvetáieva, merece ser celebrada como um dos acontecimentos mais significativos dentro do âmbito editorial brasileiro. Organizado e publicado originalmente na França por Tzvetan Todorov, a obra reúne cartas, poemas e fragmentos de diários da poeta russa, considerada por Todorov uma das maiores escritoras do século 20, e admirada por gente como Rainer Maria Rilke, que lhe dedicou a última das Elegias de Duíno. O livro – tema da coluna do poeta e diplomata Felipe Fortuna à página 7 deste Idéias – foi traduzido por Aurora Bernardini, que, além de talentosa e competente, convive com a magnífica obra de Tsvetáieva há mais de duas décadas. Nesta entrevista, Aurora Bernardini fala sobre a poeta que traduziu para um português, digamos, mais selvagem que bem escrito, um português-brasileiro em chamas.

Quais as diferenças da sua tradução em relação à edição francesa?

A primeira diferença é o título: Vivre dans le feu era o que Todorov escolheu, mas em português não dá. Pensamos junto com a equipe da editora Martins em algo como Uma vida em chamas, mas mudamos para o título atual por estar mais próximo à idéia de Tsvetáieva. Viver no fogo é uma alusão à salamandra e à fênix, dois seres mitológicos de que ela gostava muito, por resistirem ao irresistível e limitarem com o absoluto. A nossa tradução possui versões diferentes dos poemas russos que constam do livro em francês e notas explicativas.

Nas primeiras linhas da introdução, Tzvetan Todorov afirma que Tsvetáieva "é uma das maiores escritoras do século 20" e que "seu destino é um dos mais trágicos"...

Quanto ao destino trágico: voltar para a URSS em plena fase stalinista às vésperas do início da 2ª Guerra e se ver refugiada às vésperas da operação Barbarossa (invasão da URSS pelos alemães) num vilarejo perdido da República Tártara junto com o filho, último sobrevivente da família aos expurgos (já haviam sido presos a filha Ália e o marido Seguei). Dificilmente haveria pior época. No entanto, no meio de tantas adversidades (mesmo na França, ela foi tratada como a ovelha negra da emigração russa, excluída de todas as revistas a partir do momento em que saudou Maiakóvski), Tsvetáieva continuou compondo seus versos. Quando não pôde mais escrever, suicidou-se.

Fale da poesia de Marina Tsvetáieva. Quais são as características próprias de sua linguagem?

O que impacta nela são a extrema concisão e a escavação à qual submete as palavras. As rimas são altamente inovadoras e a pontaria é certeira. Por isso o efeito é de grande autenticidade.

Como foi a relação dela com os poetas de seu tempo e as vanguardas da época, como o cubo-futurismo?

Os bons poetas, ela apreciou-os todos. Não discriminava sexo ou tendência: Maiakóvski, Biéli, Balmont, Pasternak, Mandelstam, Anna Akhmátova, Kuzmin. Mas era terrível com quem não gostava. Não gostava de Briússov, e num ensaio explica o porquê com uma contundência de dar inveja ao melhor crítico literário. Na França, onde viveu 14 anos, além dos clássicos, apreciava André Gide, para quem escreveu uma longa carta-aula sobre tradução criativa (que consta do livro), Anna de Noailles, para quem também escreveu, e Natalie Clifford Barney, uma famosa homossexual que mantinha um famoso salão em Paris. Para ela, escreveu "Carta à amazona", onde se revela desprovida de qualquer preconceito de ordem sexual. Quanto às vanguardas, sua poesia tinha muitos elementos germinais do cubo-futurismo russo, o uso das raízes das palavras, por exemplo, mas, na França, quando alguma revista recusava seus poemas por não serem "nem sequer surrealistas", comentava, avec panache: "Ainda bem"! De uma maneira geral ela se manteve afastada dos preceitos de qualquer escola.

O que os contemporânes de Tsvetáieva, como Maiakovski e Pasternak, diziam da poesia dela?

Pasternak considerava-a uma mestra do simbolismo russo, uma vez que "tinha realizado com a maior naturalidade aquilo que os simbolistas haviam procurado em vão". Mas ela superou o simbolismo. Já Maiakóvski achava-a por demais feminina, e Górki por demais sensualista.

Existem semelhanças e diferenças entre a poesia de Marina Tsvetáieva e a dos grandes poetas de sua época?

Tsvetáieva era uma poeta tão consumada que sabia assimilar o estilo dos poetas que admirava. No ciclo dedicado à Akmátova, escreveu como a acmeísta; nos dedicados a Blok, como o simbolista, e assim por diante: Pasternak, Maiakóvski, o próprio Púchkin... Mas ela destaca-se por suas características próprias.

Tsvetáieva se relacionou também com magnificos poetas não-russos de sua época, como Rilke...

Ela tinha uma excelente formação em literatura alemã (a mãe era uma refinada musicista de ascendência germânica) e vivera sua primeira mocidade inebriada por Goethe, a quem considerava o mestre dos mestres. Isso sem contar sua paixão por Napoleão e pelos românticos franceses: Rostand, Rolland. Quando conheceu Rilke, por intermédio de Pasternak, passou a corresponder-se com ele em alemão e o fez tão magistralmente que encantou o poeta, a ponto de este dedicar-lhe sua última elegia.


Em algumas páginas de Vivendo sob o fogo, Tsvetáieva expressa incalculável paixão pelo poeta Boris Pasternak.... Como foi essa relação?

A questão da paixão, ou melhor, das paixões, é uma constante na vida e na obra da poeta. Ela escrevia em estado de paixão. No caso de Pasternak, durante um período, a atração, despertada pela poesia, se transformou em recíproco apaixonamento, não favorecido pelas circunstâncias. Ela era muito sedutora e chegava a exigir que os objetos de sua predileção se apaixonassem por ela... Era uma devoradora de almas.

Como você percebe Vivendo sob o fogo em relação a poesia de Tsvetáieva e vice-versa?

O livro é o enredo dos poemas. Um livro fundamental para entendê-los e acompanhá-los.

Qual a relação entre vida (experiência) e literatura (verbocriação) na obra dela?

Tsvetáieva insiste que primeiro vinha a vida, depois a criação. Mas está claro que as duas existem em função uma da outra. Ela sente que se aproxima a morte quando não consegue mais compor.

O que os jovens poetas brasileiros podem aprender com as páginas incendiárias da grande poeta russa?

Há, sim, alguns preceitos fundamentais para os jovens poetas: 1) em termos de arte, não fazer concessões; 2) em termos de vida, ser fiel a seus princípios íntimos; 3) acreditar que a arte é a expressão privilegiada e os artistas, seres que receberam um dom pelo qual devem prestar contas. 4) a arte exige exercício constante e dedicação contínua. E muitos outros que cada poeta há de encontrar...
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