domingo, 12 de abril de 2009

Rimbaud, para lá da sua lenda


As cartas inéditas do poeta, quase umas memórias, descobrem a sua faceta mais íntima

ELSA FERNÁNDEZ-SANTOS – Madride – 20/03/2009

Para Albert Camus era "o maior de todos", e Patti Smith considerava-o "o primeiro poeta punk". A Arthur Rimbaud (1854- 1891) bastou-lhe um livro, uma temporada no inferno, para converter-se em mito. Tinha 18 anos e pouco depois decidiu que a literatura morrera para ele. Queria viver todas as vidas. E, apesar de morrer aos 37 anos dum cancro de ossos, quase o conseguiu. Prometo ser bom: cartas completas (Barril & Barral) reúnem a correspondência completa do poeta. Missivas autobiográficas que revelam os medos e anseios na desesperada voz de um homem condenado a errar, que viajou incansavelmente, foi professor, mendigo, explorador, comerciante, traficante de armas e até membro de um circo. A desamparada fuga de um poeta cujas consignas visionarias – "Eu sou outro", "Há que ser absolutamente moderno", "A verdadeira vida está ausente" – converteram-no num grande mito da rebeldia adolescente. Longe dessa imagem, a sua correspondência, inédita até agora em Espanha, descobre outro Rimbaud. Mais íntimo e longe da lenda.

Inquieto, irascível e insensato, também cresceu, perdeu e assentou a cabeça

"De que servem estas idas e vindas, estas fatigas?", escreve em 1883

O livro inclui o 'dossier' com o julgamento pelo disparo ao seu amante, Verlaine

"Enfim, nossa vida é miserável, uma miséria eterna. Para que vivemos?"

Inquieto, irascível e insensato, também cresceu, perdeu e assentou a cabeça. Em 1883 confessa aos seus o desejo de ter uma família: "Isabel [a sua irmã] equivoca-se com a sua decisão de não se casar se alguém sério e experimentado se apresentasse, alguém com um futuro. A vida é assim e a solidão é má coisa. Acho insignificante o estar casado e ter uma família. Mas estou condenado a errar [...] De que servem estas idas e vindas, estas fatigas, estas aventuras junto a raças estrangeiras, estas línguas com as que se enche a memória e estes sofrimentos sem nome se não posso, passados alguns anos, descansar num lugar que goste, encontrar uma família e ter um filho com o qual possa estar, passar o resto da minha vida, educando-o como se quer, criar e armar a instrução mais completa que alguém possa esperar, e que o veja converter-se num engenheiro prestigioso, um homem rico e poderoso graças à ciência?".

E em 1889, o poeta mostra um apego familiar impróprio do mito: "Minha querida mamã, minha querida irmã: ao mesmo tempo que me desculpo por não escrever-lhes mais amiúde, aproveito para desejar-lhes um feliz ano 1890, uma boa saúde. Ando muito ocupado e comporto-me o melhor que sou capaz enquanto me aguento muito, muito. Recebo também poucas notícias vossas. Sede mais prolixos e não duvideis que sou vosso servidor".

Para trás ficam a raiva e o entusiasmo das suas cartas a Paul Verlaine, amante, que cansado da sua jovem e grávida mulher foge com ele e lhe chama "o homem das solas de vento". A relação de Verlaine e Rimbaud não tardou em converter-se, tal e como definiu o próprio poeta, nas de "um marido infernal e uma virgem louca". Em Julho de 1873 escreve: "Volta, volta, querido amigo, amigo único, volta. Prometo ser bom. Se me mostrei desagradável contigo, foi apenas uma brincadeira; ofusquei-me, arrependo-me disso mais do que serás capaz de imaginar. Volta, e tudo se esquecerá totalmente. Que desgraça que hajas tomado a sério esta brincadeira! Não paro de chorar desde há dois dias. Volta. Sê valente, querido amigo. Nada está perdido todavia. [...] Não me esquecerás, não é verdade? Não, não me podes esquecer, eu levo-te sempre comigo".

Ademais das cartas, Prometo ser bom (que na segunda-feira se apresenta em Madride numa jornada no Centro Cultural Moncloa que inclui um recital de poesia, um concerto, uma mesa redonda e a projecção dum documentário) reúne o Dossier de Bruxelas com as declarações e os interrogatórios sobre o disparo a Paul Verlaine, as cartas da sua irmã Isabel e da sua mãe e um artigo, de cuja autoria não se sabia até 2008, publicado com o pseudónimo de Jean Baudry numa revista em 1870.

A vida deixou a sua impressão no poeta dos olhos azuis ("Porto-me bem, mas o cabelo encanece-me por minutos. Faz tanto tempo que isto sucede que temo que a minha cabeça pareça agora a de uma borla de maquilhagem. Resulta-me desoladora semelhante traição do couro cabeludo, mas que fazer?"). Até que em 1891, meses antes de lhe amputarem a perna carcomida pelo cancro de ossos que o matará, pede à sua mãe que lhe envie umas meias para o aliviar. "Encontro-me mal. Tenho na perna direita varizes que me fazem sofrer muito. [...] Faz-me este favor: compra-me um remédio para as varizes, para uma perna longa e magra. [...] A má alimentação, os alojamentos insalubres, as roupas demasiado ligeiras, os problemas de todo o tipo, o aborrecimento, a raiva permanente no meio de negros tão imbecis como canalhas; tudo isto ataca profundamente a moral e a saúde em muito pouco tempo. Uma pessoa envelhece muito rapidamente aqui, como em todo o Sudão".

Já com a perna amputada, num hospital de Marselha, incapaz de dormir e descansar por causa das dores, escreve à sua irmã Isabel: "Minha querida irmã: Não me escreves. Que se passa? A tua carta assustou-me, gostaria de ter noticia tuas. Espero que não sejam novos problemas, já temos bastantes! Não deixo de chorar dia e noite, sou um homem morto, aleijado para a vida. [...] Não sei o que fazer. Tudo isto me põe louco: não consigo dormir nem um só minuto. Enfim, a nossa vida é miserável, uma miséria eterna. Para quê vivemos? Envia-me notícias".

EL PAÍS

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