sábado, 25 de abril de 2009

A Memória de Jaime Galante na Faina do Bacalhau


Público

Em 1948, com apenas 16 anos, Jaime Galante experimentou pela primeira vez a aventura nos bacalhoeiros portugueses nas águas da Terra Nova. Ao fim de 25 anos de pesca do bacalhau, decidiu acabar de vez com uma vida marcada pela má alimentação e pela falta de higiene. Memória de um tempo que já não existe. Por Ângelo Teixeira Marques

O mar entrou cedo na vida de Jaime Galante Rodrigues, um pescador de Vila do Conde que passou 25 dos seus 71 anos na safra do bacalhau. Aos nove anos, quando teve de abandonar a escola para minorar a pobreza da família com dez bocas para alimentar, o pai já andava na safra do bacalhau, mas Jaime começou pela faina costeira. Em 1948, o pai entendeu que estava à altura do desafio. Aos 16 anos, embarcou em Lisboa no "Adélia Maria", um bacalhoeiro de Aveiro, com quatro mastros e um pequeno motor auxiliar.

Entrou com a categoria profissional mais baixa de todas as existentes a bordo: era simplesmente um dos "moços". Um membro "sem direito a nada", nem sequer a sentar-se à mesa junto dos demais cinquenta pescadores, motoristas e cozinheiros. E muito menos junto do topo da hierarquia, composto por "oficiais, capitão e imediato". Por ironia, estes tinham direito ao trabalho privativo de um "moço".

Um "moço" não ia à faina, mas a permanência a bordo significava uma carga de trabalhos, desde a limpeza à distribuição de refeições e, a parte mais dura, o labor no sal, no porão. Os navios zarpavam na Primavera para safras que duravam cerca de seis meses e iam carregados de sal para proteger, no regresso, o bacalhau pescado.

O porão tinha diversas divisões e era necessário transferir o sal de umas para as outras, à medida que o peixe ia sendo pescado e acamado. Jaime Galante lembra-se de um "moço" ter falecido "no espaço de um dia", com uma "pneumonia galopante" que suspeita ter sido causada pelo choque térmico entre um corpo quente pelo suor adquirido no porão e uma aragem fria apanhada no topo do barco. "Era um trabalho de escravo", sintetiza.

Aos 18 anos, Jaime ascendeu a pescador. As viagens para a Terra Nova duravam cerca de 15 dias e o tempo era passado a preparar os aparelhos para a pesca, a jogar às cartas, a alar as velas (para poupar o motor) ou a limpar o barco. "Arranjavam sempre algo para fazermos", diz. Chegados à Terra Nova, onde adquiriam o isco - "a sarda era o melhor, o pior as lulas-gigantes, demasiado rijas" - , principiava a saga da pesca. Às quatro da manhã, ouvia-se o "Louvado" - uma ladainha religiosa que funcionava como despertador. O pequeno-almoço era escasso. "Normalmente, um pão e algo com parecenças de café ou feijão com peixe", conta.

De súbito ouvia-se um grito - "tira o isco, corta o isco, vamos arriar!" - e eram despejados na água os botes à vela e remos, com uma mão-cheia de pescadores a bordo. Jaime Galante ainda chegou a utilizar a "linha de mão", que tinha somente dois anzóis, mas este apetrecho foi ultrapassado pelos mais modernos e produtivos "trole" e "zagaia". O trole era composto por uma linha com "seiscentos anzóis ou mais" que tinha de ser estendida por longos quilómetros. E aqui levantava-se uma dificuldade: com tantos botes na água, os pescadores tinham de arranjar espaço para todos. Logo, os últimos botes a entrar na água eram os que regressavam mais tarde ao ponto de partida. O retorno era sinalizado pelo içar "de uma bandeira preta formada por dois panos de serapilheira". Assim, ficavam no mar, "no mínimo, até às seis horas da tarde" e só depois é que a barriga era reconfortada.

Mas o trabalho não acabava com as capturas. Já no navio, os pescadores eram divididos por três mesas e o peixe ia passando "como numa fábrica": "Uns faziam trote, abriam a barriga [do peixe], outros tiravam as tripas e partiam a cabeça e os últimos escalavam". Depois de lavados, os bacalhaus iam para os porões onde estavam outros membros da tripulação a fazer "a salga".
Até Junho, a faina era passada na Terra Nova. Depois o barco arribava à Gronelândia, onde, devido ao frio, o bacalhau "era mais escuro e tinha menos possibilidade de se estragar". Gastava, por isso, menos sal, o que agradava sobremaneira a quem tinha de gerir a quantidade do conservante. Por causa do tempo gélido, nos finais de Agosto o barco deixava a Gronelândia e, "se não estivesse carregado, voltava à Terra Nova para acabar de encher [com pescado]". Muito trabalho e pouco descanso. Só quando dava a "brisa" [ventos tempestuosos] é que os músculos descansavam.

O terceiro naufrágio
Numa das viagens, Jaime Galante viu uma "coxa de uma vaca" a descongelar e quando, noite alta, regressou da "vigia" no leme, sentiu uma fome corrosiva. Juntou-se a meia-dúzia de "camaradas" mais chegados e, com a afiadíssima "faca de escala", tirou tiras de bife que fritou na "máquina que era a petróleo, mas funcionava a gasóleo" - uma espécie de minifogão. Só que os improvisados cozinheiros esmeraram-se no tempero ("colocámos um bocadinho de pimenta, alho...") e "o cheiro começou a espalhar-se" pelo barco. No dia seguinte, da peça de carne só restava o osso.

E, por causa da alimentação, Jaime Galante quase encabeçava uma rebelião. O barco já tinha Aveiro à vista, mas como estava totalmente carregado - tinha capacidade para " onze mil quintais" (cada quintal é equivalente a 60 quilogramas) o calado roçava o fundo do mar e a aproximação à costa ficou dependente de uma boa maré. O proprietário mandou ao encontro da embarcação uma lancha com "hortaliças, batatas, ovos e metade de uma vaca". Só que, na hora da refeição, os pescadores viram-lhes cair no prato "feijões e peixe amarelo feito em sebo". O mesmo cardápio dos últimos meses e que enfastiava a tripulação. "Que c...... é isto?", zangou-se Jaime Galante, que foi pedir meças ao capitão do barco e, após uma azeda troca de palavras, o pescador, forrado com a presença dos restantes camaradas, ameaçou o superior. Galante esteve em vias de ser preso, mas o dono da firma "não enviou a polícia".

Em 1968, o "Adélia Maria" naufragou, em virtude de um incêndio, e Jaime Galante transitou para uma embarcação maior, a "Capitão José Vilarinho", que dava trabalho a "mais de oitenta pescadores". Mas também este barco iria naufragar, abalroado por um pesqueiro canadiano, quando encetava a fuga a um ciclone. Neste caso morreram quatro membros da tripulação.
Finalmente, Jaime Galante, já como "mestre-salga", seria tripulante do "Vila do Conde", mas a sina dos naufrágios perseguia-o e também o barco com o nome da sua terra foi ao fundo, depois de um incêndio a bordo. O pescador deixou a faina do bacalhau de vez. E depois de uma passagem por Espanha, da participação numa cooperativa, comprou um "barquito" de pesca local com o qual ganhou o pão até se reformar. E aí verificou que a pesca do bacalhau "era uma ilusão": os que trabalhavam e arriscavam ganhavam "uma miséria".

Jaime Galante ficou, pelo menos, a conhecer todos os segredos do bacalhau e sentencia: "O nosso bacalhau vinha cinco ou seis meses espremido no sal. Depois era seco ao sol e quando ficava de molho crescia e as postas pareciam lascas. Hoje a salga dura um dia ou dois e, por isso, o bacalhau fica branco por dentro e parece palha".

Domingo, 21 de Dezembro de 2003

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