Amílcar Cabral estuda em
Lisboa e pensa no regresso a África. E, entretanto, o que está a acontecer no
resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
Carlos Pinto Santos
http://www.vidaslusofonas.pt/amilcar_cabral.htm
Em Cabo Verde as autoridades proíbem o programa de rádio de Amílcar
Cabral. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a
Tábua Cronológica.
Amílcar propõe a
reafricanização dos espíritos. E, entretanto, o que está a acontecer no resto
do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
Amílcar Cabral chega a Portugal em 1945. É o
ano da grande esperança para os democratas portugueses, depressa desfeita
quando Salazar garante a condescendência dos vencedores da Segunda Guerra
Mundial e mantém, inalterável e apoiado, o regime de ditadura.
A primeira mulher de
Amílcar, Maria Helena de Athayde Vilhena Rodrigues, foi sua colega no Instituto
de Agronomia. Narrou assim a Mário de Andrade o conhecimento do futuro marido,
de quem viria a ter duas filhas, Iva Maria e Ana Luísa:
"Conheci Amílcar no
primeiro ano de Agronomia, em 1945. As aulas tinham começado em Novembro, ele
chegou em Dezembro (...) Eu não pertencia ao seu grupo, mas lembro-me
perfeitamente de o ver entre os outros colegas. Como ele era o único negro,
notava-se bem... Amílcar não fizera o exame de admissão à Universidade (...)
toda a gente falava dele, elogiava a sua inteligência e ele, para mais, era
simpático e descontraído. No que respeita às suas actividades políticas,
lembro-me que os meus camaradas recolhiam assinaturas de adesão aos movimentos
democráticos. E Amílcar participava activamente nesses comités de estudantes
antifascistas. Aquando das assembleias era ele quem dirigia as discussões
porque se exprimia muito bem (...) No princípio do terceiro ano, em Outubro de
1948, pertencemos à mesma turma, a dos únicos vinte e cinco estudantes que
tinham passado nos exames".
Condiscípulos e amigos
recordam Amílcar como um indivíduo de dinamismo contagiante, grande sentido de
humor, com enorme capacidade de criar amizades. Sedutor, atrai afectos
femininos com facilidade.
"Era o mais bem
vestido e aprumado de todos nós", lembra seu amigo, o jornalista Carlos
Veiga Pereira.
"O meu irmão
conseguia fazer amizades em todo lado", diz Luís Cabral. "Foi pela
simpatia de Amílcar — revelou em entrevista ao "Diário Popular" o
primeiro presidente da República da Guiné-Bissau — que os soviéticos nos
forneceram os mísseis com que controlámos a aviação portuguesa. O magnata italiano
Perelli era seu amigo e deu-nos as fardas de oficiais que usávamos. Tudo por
amizade e simpatia".
O estudo, a militância, os
namoros, ainda lhe deixam tempo para se dedicar ao seu desporto preferido: o
futebol.
E, segundo as crónicas,
caso o tivesse querido poderia ter feito carreira. De tal maneira dá nas vistas
na equipa de Agronomia que o Benfica chega a convidá-lo para ingressar no
clube. Mas Amílcar declina a proposta e mantém-se apenas nos
"pelados" universitários.
Durante os anos de estudo
um irresistível apelo o toma, bem como a outros estudantes negros: era
necessário o regresso a África. Não só pela família que ama profundamente, mas
porque "milhões de indivíduos têm necessidade da minha contribuição na
luta difícil que travam contra a natureza e os próprios homens (...) Lá, em
África, apesar das cidades modernas e belas da costa, há ainda milhares de
seres humanos que vivem nas mais profundas trevas". Em 1949, escreverá:
"Vivo intensamente a vida e dela extraí experiências que me deram uma direcção,
uma via que devo seguir, sejam quais forem as perdas pessoais que isso me
ocasione. Eis a razão de ser da minha vida".
Esta vida a que se refere,
partilha-a, em Lisboa, no Instituto de Agronomia, na Casa dos Estudantes do
Império e nos livros que lhe abrem os horizontes de compreensão do mundo do seu
tempo. Entre esses livros um será determinante: a Anthologie de la nouvelle
poésie négre et malgache, organizada por Léopold Sédar Senghor. Este livro
traz-lhe a certeza que "o negro está a despertar em todo o mundo".
Teoriza sobre o cabo-verdiano — o homem resultante da fusão dos primeiros
habitantes do arquipélago, brancos e negros. Já então reconhece que o número de
mestiços é seis vezes superior ao dos brancos e três vezes ao dos negros — do
ponto de vista psíquico há um "espírito cabo-verdiano", existe a
cabo-verdianidade. Esta profissão de fé tem de ser harmonizada com a
militância. No quinto ano do curso, Amílcar volta ao arquipélago para passar as
férias grandes. A sua especialidade técnica - a erosão dos solos - e a cultura
geral de que dispõe, quer transmiti-las e ensiná-las aos cabo-verdianos. Na
Praia, pronuncia, através do Rádio Clube de Cabo Verde, várias palestras sobre
as características do solo das ilhas. Apesar das dificuldades, reconhece que a
agricultura é a base da economia de Cabo Verde. Para tal, é necessário
elucidar, esclarecer, consciencializar o homem da rua. Amílcar coloca o
problema da elite na sociedade. É preciso criar uma vanguarda intelectual que
leve ao cabo-verdiano anónimo toda a informação sobre os seus problemas
tradicionais. Como dirá: "Os quadros devem esclarecer aqueles que vivem na
ignorância".
Esta informação deve
ultrapassar os limites de Cabo Verde e tornar-se uma informação global que se
alargue a todo o mundo. Eis a sua tarefa de militante: consciencializar os
cabo-verdianos.
Mas as autoridades
portuguesas rapidamente lhe proíbem o acesso à rádio. Como lhe proíbem que
ministre um curso nocturno na Escola Central da Praia.
"Dar a conhecer Cabo
Verde aos cabo-verdianos" corresponde ao que acontece em Angola:
"Partamos à descoberta de Angola" é a divisa de um grupo de jovens
intelectuais em torno do poeta Viriato da Cruz.
De novo em Lisboa, Amílcar
firma os laços que o unem a outros estudantes originários das colónias
portuguesas. Trata-se de um grupo de jovens, provenientes da pequena burguesia
urbana africana, todos conscientes da revolta contra o colonialismo e
detentores da vantagem de possuírem instrução e cultura. Militam nas
organizações da juventude democrática portuguesa, o MUD Juvenil, o Movimento
para a Paz. Com uma bandeira que os diversifica dos europeus: a reafricanização
dos espíritos, diz Amílcar Cabral. Esta reprocura da identidade leva à criação,
em casa da família Espírito Santo (de que é figura proeminente a santomense
Alda Espírito Santo), de um Centro de Estudos Africanos. Ali se discutem,
apesar das incursões da PIDE, algumas das questões mais prementes da África sob
a domínio português. Amílcar tem nesses debates uma participação decisiva.
O PAIGC E O INÍCIO DA LUTA ARMADA
Amílcar Cabral vai para
Bissau como engenheiro agrónomo. E, entretanto, o que está a acontecer no resto
do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
Amílcar Cabral funda o
PAIGC e inicia a luta armada contra o Estado Português. E, entretanto, o que
está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
Após terminar o curso, em
1950, faz estágio na Estação Agronómica de Santarém. Pouco depois, falece
Juvenal Cabral. Em 1952, Amílcar regressa a África, a Bissau, contratado pelos
Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné Portuguesa.
Aos 28 anos desembarca em
Bissau um engenheiro agrónomo que tem em mira outros fins que não só os da sua
profissão (onde, aliás, será sempre de grande competência). O principal desses
fins: consciencializar as massas populares guineenses. Como escreverá na
comunicação aos quadros, em plena luta de libertação, em 1969: "Não foi
por acaso que viemos para a Guiné. Nenhuma necessidade material determinava o
nosso regresso ao país natal. Tudo foi calculado, passo a passo. Tínhamos
enormes possibilidades de trabalhar nas outras colónias portuguesas e mesmo em Portugal. Abandonámos
um bom lugar de investigador na Estação Agronómica para virmos para um lugar de
engenheiro de segunda classe na Guiné (...) Isto obedeceu a um cálculo, a um
objectivo, à ideia de fazer qualquer coisa, de contribuir para o levantamento
do povo, para lutar contra os portugueses. É isso que temos feito desde o
primeiro dia em que chegámos à Guiné".
O "Engenheiro",
como lhe chamarão os compatriotas, está na melhor das posições para levar a
cabo a tarefa de consciencialização. No posto agrícola de Pessubé, que dirige,
contacta com os trabalhadores rurais entre os quais cabo-verdianos. É difícil a
unidade entre estes e os guineenses para a constituição de uma luta comum. Será
difícil até ao fim, apesar de alguns cabo-verdianos (Aristides Pereira,
Fernando Fortes, Abílio Duarte, entre outros) se unirem à sua volta. O trabalho
político segue a par da actividade profissional. Encarregado da planificação e
execução do recenseamento agrícola da Guiné, o relatório que elabora continua a
ser hoje o primeiro dado valorizável para o conhecimento da agricultura
guineense.
A princípio, Amílcar
Cabral procura agir na legalidade. Redige os estatutos de um Clube desportivo e
cultural ao qual podem aderir todos os guineenses. As autoridades portuguesas
não o autorizarão a funcionar porque a maioria dos signatários não possui
bilhete de identidade.
Em 1955, o governador Melo
e Alvim obriga Cabral a deixar a Guiné, embora lhe permita voltar uma vez por
ano, por razões familiares.
1955 é o ano da
Conferência de Bandung que assinala o nascimento do Movimento dos
Não-Alinhados, do final da primeira guerra de independência do Vietname, da
passagem à luta armada da FNL argelina. E Amílcar Cabral transferido para
Angola, trabalha em Cassequel, como engenheiro... e tomando contacto activo com
os fundadores do MPLA, ao qual se liga, desde início.
Numa das suas passagens
por Bissau, a 19 de Setembro de 1959, Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Luís
Cabral, Júlio de Almeida, Fernando Fortes e Elisée Turpin criam o Partido
Africano da Independência/União dos Povos da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).
Obviamente, um partido clandestino, que só deixará de o ser quatro anos mais
tarde, quando instalar a sua delegação exterior em Conacri.
Nesse período, a
actividade de Amílcar Cabral é esgotante. Continuando os seus estudos
fitossanitários e agrológicos, viaja frequentemente entre Portugal, Angola e
Guiné.
Em Novembro de 1957
participa em Paris numa reunião para o desenvolvimento da luta contra o
colonialismo português, mantém contactos com os anti-colonialistas em Lisboa,
está em Accra num encontro pan-africano e vai a caminho de Luanda quando ocorre
o massacre de Pidjiguiti. Em Janeiro de 1960 vai à II Conferência dos povos
africanos, em Tunis, em Maio está em Conacri. Ainda neste ano, em Londres, denuncia
numa conferência internacional, pela primeira vez, o colonialismo português.
Mas aí, como durante todos os anos de luta, sublinha com ênfase não estar
contra o povo português. O seu combate é, em exclusivo, contra o sistema
colonial.
Hoje, as investigações
históricas e os depoimentos de muitos intervenientes da época mostram que líder
do PAIGC sempre se disponibilizou para negociações com o Governo português,
nunca aceites pelo regime da ditadura.
Entre 1960 e 1962, o PAIGC
actua a partir da República da Guiné. Essa actuação desenvolve-se em três
aspectos: formar militantes e quadros para a difusão do Partido no interior da
Guiné, garantir o apoio dos países limítrofes (o que foi tarefa complicada
porque a República da Guiné pretendia a utilização dos guineenses de Amílcar
Cabral na sua própria política e porque o Senegal se manifestou hostil durante
seis anos) e, finalmente, a obtenção do apoio internacional.
É a República Popular da
China quem dá o primeiro passo, recebendo, em 1960, Amílcar Cabral e alguns
quadros que ali ficarão preparando a guerrilha e a formação ideológica. Em 1961
o Reino de Marrocos concede-lhe idêntico apoio.
Em 1962, desencadeia-se a
luta armada contra o Estado Português. Tinham passado 17 anos desde que o filho
de Juvenal Cabral chegara a Lisboa para frequentar a Universidade.
UMA TEIA DE INTERESSES
Séku Turé instiga ao assassínio de Amílcar. E,
entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua
Cronológica.
Em reportagem publicada no
Expresso, a 16 de Janeiro de 1993, José Pedro Castanheira fornece uma série de
dados sobre a morte de Amílcar Cabral, que, três anos depois aprofunda no livro
"Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?".
É possível crer em vários
factos. A política colonial portuguesa, dividindo para reinar, criara uma
diferenciação entre cabo-verdianos e guineenses. Os primeiros, mestiços na sua
grande maioria e mais escolarizados, são os preferidos da administração do
Estado Novo. Desempenham os cargos menos desqualificados, usufruem de um
tratamento preferencial. Quando se constitui o PAIGC, os quadros dirigentes são
cabo-verdianos, os combatentes são guineenses. O próprio Amílcar Cabral, embora
nascido na Guiné, é considerado cabo-verdiano. As tensões, os conflitos no
interior do PAIGC existiram sempre. Em 1973, a guerra de libertação nacional
encaminha-se para a vitória. Os dirigentes políticos continuam a ser cabo-verdianos.
É provável que a proximidade do êxito extremasse a confrontação no Partido.
Séku Turé que, desde 1958,
fora um líder africano de grande prestígio está em perda de influência. Por seu
turno, Amílcar Cabral é uma personalidade que se evidencia na cena africana e
internacional, reunindo apoios que vão da China e dos regimes comunistas, aos
países nórdicos. O grande sonho de Turé de anexar a Guiné-Bissau para criar a
"Grande Guiné" está em perigo. É bem provável que tivesses dado
sinais de concordância aos revoltosos - todos guineenses - para consumarem o
crime. Cabral sairia de cena, o PAIGC desmembrar-se-ia, passando, na prática,
para o controlo de Turé. (Em Maio de 1974, Leopold Senghor, Presidente do
Senegal, não hesita em afirmar ao coronel Carlos Fabião e ao embaixador Nunes
Barata ter sido Séku Turé o instigador do assassínio de Amílcar Cabral).
Por fim, a PIDE/DGS. Desde
muito, pelo menos desde 1967,
a organização policial portuguesa procurava matar
Cabral. Alguns guerrilheiros prisioneiros foram manobrados para colaborarem com
a polícia política. Ficou provado em relação a alguns dos intervenientes no
atentado. Tudo leva a crer que, em medida desconhecida, a PIDE não foi alheia a
toda a trama.
Testemunhos da época
revelam também que Amílcar Cabral tinha consciência que poderia ser traído
pelos companheiros de luta. Afirmara algumas vezes: "se alguém me há-de
fazer mal, é quem está aqui entre nós. Ninguém mais pode estragar o PAIGC. Só
nós próprios".
AS VÁRIAS MORTES DE AMÍLCAR CABRAL
Amílcar Cabral foi
sepultado no cemitério de Conacri. Desaparece de cena o mais esclarecido
dirigente africano da sua geração, o principal teórico da luta armada africana
de libertação.
O homem que sempre viveu
em coerência com os seus ideais, o líder do movimento guerrilheiro que almejava
uma comunidade fraterna que floresceria — em várias ocasiões o escreveu e disse
— quando os dois povos levados à guerra se libertassem do opressor comum, seria
morto mais vezes.
Vítima de um ajuste de
contas que não merecia, Amílcar Cabral teve a segunda morte no golpe de Estado
de Nino Vieira de 14 de Novembro de 1980 que arrasou o seu grande sonho de
fazer da Guiné e de Cabo Verde um único país, ou, pelo menos, uma união de
Estados capaz de se impor aos desígnios hegemónicos dos governos de Dacar e
Conacri, e desmembrou o PAIGC por ele fundado.
Morreu com a ostentação, a
corrupção e a sanha sanguinária na resolução dos diferendos políticos onde se
deixaram atolar muitos dos dirigentes guineenses.
Morreu com a miséria, a
doença e a fome que dizima o seu povo vinte anos depois da independência
admiravelmente conquistada nas matas de Madina do Boé.
Morreu agora outra vez
quando velhos camaradas de armas — os seus antigos camaradas — se digladiaram
numa luta fratricida infligindo à Guiné-Bissau uma destruição terrivelmente
superior à provocada por onze anos de guerra colonial vendendo, provavelmente,
a soberania nacional numa patética tentativa de conservar a bebedeira do poder.
ILHA
- um poema de Amílcar
Cabral - Praia, Cabo Verde, 1945 -
Tu vives — mãe adormecida
—
nua e esquecida,
seca,
fustigada pelos ventos,
ao som de músicas sem música
das águas que nos prendem…
Ilha:
teus montes e teus vales
não sentiram passar os
tempos
e ficaram no mundo dos teus
sonhos
— os sonhos dos teus filhos —
a clamar aos ventos que
passam,
e às aves que voam,
livres,
as tuas ânsias!
Ilha:
colina sem fim de terra
vermelha
— terra dura
—
rochas escarpadas tapando os
horizontes,
mas aos quatro ventos prendendo
as nossas ânsias!
Imagem: www.geledes.org.br
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