domingo, 4 de janeiro de 2015

Em defesa da língua portuguesa





Colunista conta como um professor de filolofia, brasileiro de origem árabe, foi um grande defensor do nosso idioma

Por Adelto Gonçalves, de Amparo

Manuel Said Ali (1861-1953), apesar da origem árabe dos sobrenomes, foi filólogo, professor do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, membro da Academia Brasileira de Filologia e autor de obras como Dificuldades da Língua Portuguesa (1908), Gramática Elementar da Língua Portuguesa (1923), Gramática Secundária da Língua Portuguesa (1925), Versificação portuguesa (1948) e Gramática Histórica da Língua Portuguesa (s.d.). Depois desta relação, não é preciso dizer que foi um dos maiores cultores da nossa Língua, “a última flor do Lácio, inculta e bela”, como dizia o poeta Olavo Bilac (1865-1918).
De Said Ali, um número da Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, republica o ensaio “O purismo e o progresso da língua portuguesa” em que o autor, a princípio, procura conjeturar sobre a origem do idioma, admitindo de procedência latina o seu cabedal mais grosso, mas lamentando que sejam só do reinado de D. Sancho I os documentos mais antigos que se conhecem. Já então, diz, aparece de tal modo caracterizado o português que, apesar da grande diferenciação de tempo, ainda assim se parece mais com a linguagem hoje falada do que com o latim.
Mais adiante, o filólogo lembra que o cânon dos puristas hodiernos, como se sabe, são as obras dos que escreveram de 1500 para cá, conhecidos pela designação de clássicos portugueses, especialmente certos quinhentistas e seiscentistas. De fato, ao tempo em que estas estrelas de primeira grandeza brilharam, não se cogitava de se buscar inspiração literária ou lingüística à França. Guardou, portanto, o idioma a sua relativa pureza, se pureza era tão-somente ficar alheio à influência do falar dos vizinhos d´além Pirineus.
No século XVIII, porém, Portugal começou a ser assolado pelos ventos que vinham de Paris, as “idéias do século”, como diz em brilhante ensaio o professor José Esteves Pereira (Portugal Contemporâneo, direção de António Reis, Lisboa, Publicações Alfa, 1990). Daí por diante, com observa Said Ali, a cultura e a língua francesas passaram a ser, em boa parte da Europa, a principal fonte de inspiração para a literatura, a filosofia e as instituições políticas e sociais.
Na virada do século XVIII para o XIX, de nada adiantava o intendente Diogo Inácio Pina Manique colocar seus espiões e moscas – havia uma diferença entre estas duas palavras que talvez só o intendente soubesse – no café Nicola e no botequim das Parras, ao Rossio, para ouvir a conversa alheia. Nem atulhar as prisões de “bota-fogos”. As idéias que vinham de França eram mais fortes, com maior poder de argumentação.
O “mal” forçava as portas do absolutismo monárquico, escrunchava, sem que houvesse força que o detivesse. E entusiasmava especialmente os jovens. Eis aqui a razão de sua vitória: as idéias novas não vencem porque derrotam as idéias velhas, mas porque uma geração as adota e se afirma com elas. Foi uma questão de tempo. Tanto que a geração perseguida por Pina Manique chegaria ao poder em poucos anos com a Revolução do Porto de 1820.
Eram tão fortes as “idéias do século” que canalizaram ao português dicções francesas, embora seja certo que tenha cooperado para isso o desamparo em que a gente educada deixou o cultivo da tradição vernácula. Diz o professor Said Ali em seu ensaio agora ressuscitado pela Revista Brasileira que muitos termos vieram de França e seu uso se tornou moda entre a boa sociedade portuguesa. Antes disso, o árabe já havia trazido à Península Ibérica um caudal léxico bastante considerável.
No Brasil, o português foi recheado por milhares de termos africanos, como nos dá conta Yeda Pessoa de Castro em Falares Africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro (Rio de Janeiro, Topbooks, 2001), sem contar as palavras de origem tupi-guarani. E em Moçambique vive amancebado com o inglês da África do Sul. Nada isso destruiu o idioma. Pelo contrário, enriqueceu-o mais.
Já lá se vai mais de meio século que o professor Said Ali escreveu seu texto e, por isso, não tivera tempo de se horrorizar com a invasão de termos ingleses em nosso idioma – e não se diga que apenas no Brasil porque em Portugal também pouca defesa se faz contra os estrangeirismos.
Primeiro, foram os publicitários que mais trataram de difundir designações estrangeiras, embora possuamos no vernáculo expressões que dizem rigorosamente a mesma coisa. Fazem isso talvez levados por “vã cobiça”, para valorizar o seu trabalho diante dos olhos leigos.
Agora, é a Internet que acaba de instilar dezenas de termos ingleses em nosso idioma. Se os clássicos portugueses, ressuscitassem hoje, por certo, levariam algum tempo para nos entender. Mas nada disso significa a morte do idioma. O português tem sido tão forte que resistirá uma vez mais a essa invasão. Como os indígenas antropófagos do Brasil à chegada do europeu, haverá de deglutir o estrangeiro para revigorar suas próprias forças.
Não é só o ensaio de Said Ali o que traz de bom este número da Revista Brasileira, uma publicação que se torna a cada edição mais atraente. Há ainda textos sobre os dez anos da morte do historiador Américo Jacobina Lacombe e do jornalista Carlos Castello Branco, além de um dossiê sobre o centenário de nascimento do poeta Carlos Drummond de Andrade e outros textos sobre prosa e poesia.
Para quem não sabe, a Revista Brasileira nasceu em 1855 e durou até 1857, sob a direção de Francisco de Paula Menezes. Surgiu outra Revista Brasileira em 1879, indo mensalmente até 1881, sob a direção de Nicolau Midosi. Depois veio a chamada fase José Veríssimo da publicação, que circulou de 1895 a 1899.
A quarta fase da Revista Brasileira, dirigida por Batista Pereira, genro de Rui Barbosa, foi de 1934 a 1935. Em 1941, a Revista passou a ser publicada pela Academia Brasileira de Letras, sob a direção de Levi Carneiro, seguindo até 1948. Depois de uma interrupção de dez anos, voltou a sair em 1958, ainda com Levi Carneiro na direção. A sexta fase, sob a orientação de Josué Montello, compreende apenas seis números, de 1975 a 1980. Voltou a ser publicada em 1994, sob a direção de João de Scantimburgo.
Adelto Gonçalves, jornalista, trabalhou no Estadão, Folha de São Paulo, Editora Abril e A Tribuna de Santos. Professor universitário, doutor em Literatura Portuguesa pela USP, autor dos livros Os Vira-latas da Madrugada, prêmio José lins do Rego, da José Olympio Editora; Gonzaga, um Poeta do Iluminismo, Barcelona Brasileira, Bocage – o Perfil Perdido e Tomás Antônio Gonzaga. Ganhou em 1986, o prêmio Fernando Pessoa, da Fundação Cultural Brasil-Portual. Professor universitário de literatura em Santos, na Universidade Paulista, Unip, e na Universidade Santa Cecília, Unisanta.
Direto da Redação é editado pelo jornalista Rui Martins


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