Fernando Correia da Silva
VAZANTE
A caravana passa... Outra vez me levanto e passeio pelo terraço. O barquinho não conseguiu alcançar S. Julião da Barra e a vazante começa a arrastá-lo para o alto mar.
http://www.vidaslusofonas.pt/salazar.htm
Somos pobres, filhos de pobres. O Estado tem de ser forte e imponente para compensar a pobreza natural do nosso povo. Cuidem eles das suas hortas que do Estado cuido eu. Admirem e orgulhem-se das obras que mandei o Duarte Pacheco, e outros, construir de norte a sul da Nação. Admirem e orgulhem-se do Instituto Superior Técnico, do Estádio Nacional e da auto-estrada que o liga a Lisboa; admirem e orgulhem-se do Hospital Santa Maria em Lisboa, e do Hospital S. João no Porto, e dos Palácios da Justiça em Lisboa e no Porto, e das pontes, e dos viadutos, e das barragens do Cávado-Rabagão, e da Idanha-a-Nova, e do Castelo de Bode.
Para admirar e orgulhar-se da nossa Pátria heróica, do nosso Estado forte, não é preciso ser-se instruído. Instrução, para quê? Basta saber ler e escrever e não é preciso que sejam todos. Se tiverem alguma dificuldade de entendimento, lá está o senhor padre para os aconselhar e orientar. Para as primeiras letras, e só para essas, mando construir uma rede de escolas pela Nação fora, e mais não é preciso. Se fôssemos todos doutores, quem iria amanhar a terra, quem iria amassar o pão, quem iria assentar tijolos? Não permito que a falsa sabedoria perturbe a inocência do nosso povo. Esconjuro a tal universidade popular desse tal Bento Caraça; é ateu, interfere com a lei divina, é comunista disfarçado de matemático, é demitido e preso.
Manda quem pode e obedece quem deve, esta é a ordem natural das coisas. Não mexo na propriedade, ela é intangível. Cobiçar os bens do próximo é tentação assoprada pelos comunistas.
Bem sei que é preciso fomentar a produção industrial. Mas o fomento é planeado por mim e aplicado conforme o Estado exige, não permito que se ponha em perigo o equilíbrio orçamental que tanto me custou a alcançar. Observo que o mundo campestre provoca os sorrisos desdenhosos da economia industrial. Por mim, se tivesse de haver competição, continuaria a preferir a agricultura à indústria. Mas se eles querem enriquecer depressa, não chegam lá pela agricultura. A faina agrícola é, acima de tudo, uma vocação de pobres. E o nosso é um povo de pobres, filhos de pobres. As nossas raízes mergulham fundo no torrão natal.
Não admito reivindicações salariais e muito menos greves, isso é obra de comunistas. Se a economia industrial está a enriquecer uns poucos e a levar um excesso de pobreza a muitos, só a mim cabe corrigir o excesso, cristão eu sou. Doo terrenos para facilitar a construção de casas com rendas limitadas. Pela província, de norte a sul mando construir as Casas do Povo. E nas grandes cidades mando edificar bairros sociais. No da Encarnação, em Lisboa, são pequenas vivendas por entre árvores, cada qual com a sua horta para plantar couves e semear batatas. Que ao menos se lembrem eles das courelas que trocaram pela cidade, à procura de melhor vida que, afinal, não será assim tão boa...
Outra vez assesto os meus binóculos. O barquinho cada vez está mais ao largo, corre o perigo de ser engolido pelas vagas do mar alto. Quem lhe pode lançar mão?
E fogem, fogem dos campos, vêm para as cidades, vão para o Brasil, vão para a Europa e a maioria dos emigrantes é clandestina. Depois da guerra, além dos Pirinéus tudo parece um mar de rosas. Odeio a Rússia e os comunistas, mas também não gosto dos americanos. Não, não! aqui não quero um Plano Marshall, pequeninos mas orgulhosos, escorados estamos por um passado glorioso. Não consigo é evitar o mar de rosas, não há barragem que o detenha, afoga-nos, poucos são os que reparam nos espinhos. De Setúbal a Braga, pelo litoral, as indústrias surgem como cogumelos depois da chuva. Em Lisboa, e no Porto, começa a haver mais gente a escrevinhar nos escritórios do que operários a produzir. Tudo muda e já não consigo travar a mudança. E os escreventes cada vez lêem mais livros e jornais, e vão a cursos nocturnos, e ouvem telefonia com ondas curtas para apanhar o estrangeiro, e vêem filmes, e fundam cineclubes, e arrogam-se o direito de exigir melhor distribuição dos benefícios acrescidos. Também os operários entram no coro, inquinados já estão uns e outros pelo comunismo.
Para evitar a inflação e os maus costumes, continuo a impor vida frugal a quem trabalha por conta d’outrem. Em consequência, são os novos Bancos e as novas Seguradoras que estão a comer a grande fatia do bolo novo, não é o Estado. Nisso não reparam os pobres diabos quando rosnam contra o Estado...
Mas uma coisa é ouvir o que nos contam, outra é ver com os próprios olhos. Chamo o Manuel e, dentro do Mercedes com os vidros foscos, às onze da noite seguimos lentamente ao longo da Avenida. É fim de semana, é Verão, e as esplanadas estão cheias. Pergunto:
- Manuel, o que estão eles a beber?
- Ó Senhor Presidente, é cervejas, é gasosas, é pirolitos, é laranjadas...
- Mas isso é muito caro, não é?
- Ó Senhor Presidente, é 25, é 15, é 10 tostões.
Pois, pois, já estou a entender... Queixam-se que não têm dinheiro e só fazem extravagâncias...
http://www.vidaslusofonas.pt/salazar.htm
Imagem: http://4.bp.blogspot.com/
VAZANTE
A caravana passa... Outra vez me levanto e passeio pelo terraço. O barquinho não conseguiu alcançar S. Julião da Barra e a vazante começa a arrastá-lo para o alto mar.
http://www.vidaslusofonas.pt/salazar.htm
Somos pobres, filhos de pobres. O Estado tem de ser forte e imponente para compensar a pobreza natural do nosso povo. Cuidem eles das suas hortas que do Estado cuido eu. Admirem e orgulhem-se das obras que mandei o Duarte Pacheco, e outros, construir de norte a sul da Nação. Admirem e orgulhem-se do Instituto Superior Técnico, do Estádio Nacional e da auto-estrada que o liga a Lisboa; admirem e orgulhem-se do Hospital Santa Maria em Lisboa, e do Hospital S. João no Porto, e dos Palácios da Justiça em Lisboa e no Porto, e das pontes, e dos viadutos, e das barragens do Cávado-Rabagão, e da Idanha-a-Nova, e do Castelo de Bode.
Para admirar e orgulhar-se da nossa Pátria heróica, do nosso Estado forte, não é preciso ser-se instruído. Instrução, para quê? Basta saber ler e escrever e não é preciso que sejam todos. Se tiverem alguma dificuldade de entendimento, lá está o senhor padre para os aconselhar e orientar. Para as primeiras letras, e só para essas, mando construir uma rede de escolas pela Nação fora, e mais não é preciso. Se fôssemos todos doutores, quem iria amanhar a terra, quem iria amassar o pão, quem iria assentar tijolos? Não permito que a falsa sabedoria perturbe a inocência do nosso povo. Esconjuro a tal universidade popular desse tal Bento Caraça; é ateu, interfere com a lei divina, é comunista disfarçado de matemático, é demitido e preso.
Manda quem pode e obedece quem deve, esta é a ordem natural das coisas. Não mexo na propriedade, ela é intangível. Cobiçar os bens do próximo é tentação assoprada pelos comunistas.
Bem sei que é preciso fomentar a produção industrial. Mas o fomento é planeado por mim e aplicado conforme o Estado exige, não permito que se ponha em perigo o equilíbrio orçamental que tanto me custou a alcançar. Observo que o mundo campestre provoca os sorrisos desdenhosos da economia industrial. Por mim, se tivesse de haver competição, continuaria a preferir a agricultura à indústria. Mas se eles querem enriquecer depressa, não chegam lá pela agricultura. A faina agrícola é, acima de tudo, uma vocação de pobres. E o nosso é um povo de pobres, filhos de pobres. As nossas raízes mergulham fundo no torrão natal.
Não admito reivindicações salariais e muito menos greves, isso é obra de comunistas. Se a economia industrial está a enriquecer uns poucos e a levar um excesso de pobreza a muitos, só a mim cabe corrigir o excesso, cristão eu sou. Doo terrenos para facilitar a construção de casas com rendas limitadas. Pela província, de norte a sul mando construir as Casas do Povo. E nas grandes cidades mando edificar bairros sociais. No da Encarnação, em Lisboa, são pequenas vivendas por entre árvores, cada qual com a sua horta para plantar couves e semear batatas. Que ao menos se lembrem eles das courelas que trocaram pela cidade, à procura de melhor vida que, afinal, não será assim tão boa...
Outra vez assesto os meus binóculos. O barquinho cada vez está mais ao largo, corre o perigo de ser engolido pelas vagas do mar alto. Quem lhe pode lançar mão?
E fogem, fogem dos campos, vêm para as cidades, vão para o Brasil, vão para a Europa e a maioria dos emigrantes é clandestina. Depois da guerra, além dos Pirinéus tudo parece um mar de rosas. Odeio a Rússia e os comunistas, mas também não gosto dos americanos. Não, não! aqui não quero um Plano Marshall, pequeninos mas orgulhosos, escorados estamos por um passado glorioso. Não consigo é evitar o mar de rosas, não há barragem que o detenha, afoga-nos, poucos são os que reparam nos espinhos. De Setúbal a Braga, pelo litoral, as indústrias surgem como cogumelos depois da chuva. Em Lisboa, e no Porto, começa a haver mais gente a escrevinhar nos escritórios do que operários a produzir. Tudo muda e já não consigo travar a mudança. E os escreventes cada vez lêem mais livros e jornais, e vão a cursos nocturnos, e ouvem telefonia com ondas curtas para apanhar o estrangeiro, e vêem filmes, e fundam cineclubes, e arrogam-se o direito de exigir melhor distribuição dos benefícios acrescidos. Também os operários entram no coro, inquinados já estão uns e outros pelo comunismo.
Para evitar a inflação e os maus costumes, continuo a impor vida frugal a quem trabalha por conta d’outrem. Em consequência, são os novos Bancos e as novas Seguradoras que estão a comer a grande fatia do bolo novo, não é o Estado. Nisso não reparam os pobres diabos quando rosnam contra o Estado...
Mas uma coisa é ouvir o que nos contam, outra é ver com os próprios olhos. Chamo o Manuel e, dentro do Mercedes com os vidros foscos, às onze da noite seguimos lentamente ao longo da Avenida. É fim de semana, é Verão, e as esplanadas estão cheias. Pergunto:
- Manuel, o que estão eles a beber?
- Ó Senhor Presidente, é cervejas, é gasosas, é pirolitos, é laranjadas...
- Mas isso é muito caro, não é?
- Ó Senhor Presidente, é 25, é 15, é 10 tostões.
Pois, pois, já estou a entender... Queixam-se que não têm dinheiro e só fazem extravagâncias...
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