Quando zarpou do Peru a bordo de uma frágil
balsa feita de juncos até a proximidade do Taiti, em 1947, Thor Heyerdahl
queria provar ao mundo sua polêmica tese de que as ilhas da Polinésia foram
colonizadas por peruanos – e não por asiáticos, como diziam os historiadores.
Mesmo que não tenha convencido os cientistas, a aventura de 101 dias no mar, a
bordo da frágil Kon-Tiki (nome de um deus da Polinésia que batizou o barco),
ganhou fama mundial ao virar best-seller e se transformar num documentário
premiado com o Oscar. E mais: a viagem
conseguiu mostrar para os incrédulos arqueólogos que o oceano não era um limite
intransponível para as frágeis embarcações dos povos pré-históricos – ou
provou, pelo menos, que isso não seria impossível se um deles tivesse o
espírito audacioso de Thor Heyerdahl.
por Pablo Villarrubia Mauso
http://super.abril.com.br
No dia 16 de abril, ao morrer de câncer no
cérebro, o norueguês grandalhão, de 87 anos, que encantou o mundo com suas
aventuras fez sua última viagem. Poucos meses antes, quando concedeu essa entrevista,
ele continuava defendendo idéias polêmicas. Em um dos seus projetos recentes,
Thor viajava em busca de evidências arqueológicas que comprovassem a sua tese
de que os vikings se originaram do Mar Cáspio, na Rússia, e só depois migraram
para os países nórdicos. Apesar da voz cansada, já abatida pela doença, seus
olhos azuis ainda brilhavam quando conversava sobre esses temas na casa em que
vivia na ilha espanhola de Tenerife, no que viria a ser um de seus últimos depoimentos.
Super – Por que o
senhor decidiu construir a balsa Kon-Tiki, em 1947?
Queria mostrar aos cientistas que o homem
sempre buscou expandir seus horizontes. Com a Kon-Tiki, quebrei o dogma de que
as barcas de junco não poderiam agüentar uma travessia da costa do Peru até a
do Taiti.
Por que o senhor foi
tão criticado por alguns cientistas?
Alguns acreditavam que a expedição de 101
dias da Kon-Tiki fora uma montagem publicitária, pois uma balsa com aquelas
características não poderia durar mais de duas horas sem afundar. Quando eles
viram o documentário, apesar de malfeito e danificado pelas condições
climáticas, ficaram calados. Ainda hoje tenho muitos inimigos. Eles já não
duvidam das minhas expedições, mas contestam a capacidade de alguns povos do passado
de navegar longas extensões marítimas.
Quais são os
principais pontos de contestação das suas idéias?
Eles não admitem, por exemplo, que o deus Kon
Tiki da Polinésia seja o mesmo Viracocha, o deus barbado e de pele branca que
era venerado no lago Titicaca, entre o Peru e a Bolívia. Na verdade, ele surgiu
nos Andes e foi levado pelos navegantes pré-incas até a Polinésia, a milhares
de quilômetros de distância. Além disso, existem inúmeras semelhanças entre as
estátuas encontradas nas ilhas do Pacífico e algumas feitas pelas antigas
civilizações da América do Sul e da América Central, sugerindo um intercâmbio
cultural maior do que os arqueólogos imaginam até hoje.
Mas só existem essas
provas?
Não, apenas lhe dei um exemplo. Posso lhe dar
outros: os polinésios usavam um complicado sistema de cordas com nós que servia
de código para guardar informações, iguais aos usados pelos incas do Peru. Na
Polinésia, foi encontrado um tipo de pedra, o lápis-lazuli, que só existe no
Chile, e uma espécie de concha que é típica do Panamá e do Equador. A partir
desse e de outros dados, especialmente botânicos, concluí que os primeiros
homens que povoaram as ilhas dos mares do Sul chegaram lá por volta do século V
antes de Cristo, procedentes do Sudoeste asiático. Um onda migratória
expressiva chegaria mais tarde, por volta de 1.100 d.C., procedente da América
do Sul.
Entre 1937 e 1938, o
senhor viajou até a ilha Fatu Hiva, no arquipélago das Marquesas, junto com a
sua primeira esposa, para viver como Adão e Eva...
O capitão do barco nos deixou naquela ilha e
só voltou um ano depois para nos buscar. Fomos morar no meio do mato. Comíamos
tudo o que a terra dava, desde cocos até raízes, além de peixes. Quisemos
experimentar como viviam os nativos no seu estado mais natural. Foi, na
verdade, um exercício filosófico que valeu a pena.
E que respostas
encontrou nessa viagem?
Primeiro, que o homem ocidental não pode
voltar ao seu estado natural. E, em segundo lugar, que o vento e as correntes
marítimas eram a chave do mistério da origem da vida sobre as ilhas da
Polinésia. Compreendi que a civilização é necessária para o homem moderno.
Porém, o homem primitivo foi mais feliz, apesar das dificuldades de
sobrevivência e de um período de vida mais curto.
O que os nativos da
ilha lhe ensinaram?
Tínhamos um mestre espiritual, um ancião
chamado Tei Tetua, o último sobrevivente de um grupo de canibais. Ele foi
convertido ao Cristianismo mas chegou a provar carne humana quando era jovem.
Foi ele quem despertou minha atenção para uma estranha lenda, a do deus Tiki, o
filho do Sol de pele branca , narrada pelos seus antepassados. Tiki chegou pelo
mar vindo do leste, procedente de uma terra enorme chamada Fiti-Nui. Foi esse
dado que me fez pensar que os polinésios receberam a visita de um rei,
pertencente a alguma civilização do Peru, trazido pelas correntes marítimas.
O senhor já esteve no Brasil?
Sim, há muito tempo. Foi em 1954, quando fui
convidado a participar do 30º Congresso de Americanistas que se realizou em São
Paulo. Estava então acompanhado da minha esposa Yvonne. Tinha curiosidade de
conhecer os índios amazônicos. Por isso, peguei um monomotor até Santa Isabel,
nas margens do rio Araguaia. O avião fez um pouso forçado durante a viagem.
Tivemos que voltar remando em uma canoa junto com o piloto e dois índios
carajás.
O que mais lhe impressionou
durante a viagem?
Durante vários dias, vimos somente a selva
verde, a água marrom, muitos pássaros multicoloridos e macacos escandalosos.
Achei impressionante quando milhares de olhos brilhantes nos espreitavam à
noite: eram jacarés. Foi fantástico. Filtrávamos a água barrenta com os lenços,
comíamos raízes e ovos de tartarugas.
O senhor é considerado
um grande ecologista, uma faceta menos conhecida dos seus leitores...
Acho que fui um dos primeiros ecologistas da
história, pelo menos do ponto de vista atual, pois os indígenas sempre foram os
que entenderam melhor as relações entre o homem e a natureza e o respeito que
se deve ter por ela. Militei durante muitos anos junto ao World Wildlife Fund
(Fundo Mundial Para a Vida Selvagem) e à Cruz Verde Internacional, ambos
dedicados à preservação do meio ambiente.
Quais são seus mais
recentes projetos e pesquisas?
Estou muito interessado na busca da origem
dos vikings. Eu mesmo tenho financiado expedições até o Mar Cáspio, na Rússia.
Ali viveram os azarís, um povo que migrou até latitudes nórdicas e se tornou
viking. Nas rochas encontrei muitas inscrições com embarcações semelhantes aos
drakares vikings.
Imagem: http://cineimpressoes.blogspot.com/
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