O que é bom de
mais para ser verdade talvez não seja verdade. Na situação limite a que
chegámos na sexta-feira, a solução escolhida pelo Banco de Portugal para o BES
era a melhor entre as possíveis. Incluindo por razões políticas. Mas dizer que
os contribuintes não vão perder dinheiro com o BES é um esconder um girino que
virará sapo para muita gente engolir como elefante. Quando as mãos já estão a
arder, é melhor tirá-las do fogo. O risco de perdas para o Estado existe. E não
é pequeno.
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Tirando alguns radicais destrambelhados,
toda a gente quer que o BES corra bem – ou menos mal. O impacto na sociedade é
tão grande, e o que sabe já sobre os atos de gestão recentes é tão grave, que
não se percebe como é que ainda não há gente detida. O Banco de Portugal não é
polícia, mas alguém em Portugal devia ser polícia: por exemplo, a polícia.
Mas o desejo de que as coisas corram bem
transforma-se mais em fé do que em certeza. Daí ouvirmos desde domingo uma corrente
positivista sobre a solução. Porque, dizem, não é uma nacionalização; e porque,
acrescentam, não tem custos para os contribuintes. Veremos. Vejamos:
O BES mau está compreendido. Não é aí
que há riscos. No BES mau há apenas um tema, o dos acionistas e obrigacionistas
que perdem (quase) todo o seu dinheiro. Não se trata apenas da família Espírito
Santo, indelevelmente ligada à gestão (e ao proveito) que produziu o maior
escândalo financeiro de sempre em Portugal. Nem se trata apenas de tubarões da
alta finança, fundos estrangeiros mais ou menos descomunais que acomodam um
prejuízo destes na cova de um dos seus dentes. Há muitos pequenos investidores
portugueses, clientes, empregados, pensionistas que investiram em ações do BES
e foram defraudados. Muitos eram-no há muitos anos. Outros eram-no há apenas um
mês e meio, quando injetaram 1,1 mil milhões de euros no BES que agora valem
quase zero. Na escala moral, é melhor que percam os investidores bolsistas do
que os contribuintes, mas não se pense que isso não é injusto (para não dizer
ilegal) nem que não tem consequências. Claro que tem. E é uma vergonha. Os
acionistas ficaram com o mau e perderam o bom.
Não há outra palavra: os acionistas do
BES foram expropriados. É uma expropriação legal, está prevista na lei (e
decorre da lei europeia), mas é ainda assim uma expropriação. Haverá uma chuva
de processos, contra a anterior gestão do BES e certamente também contra
reguladores, por terem autorizado um aumento de capital e emissão de dívida
subordinada em tempos ruidosos. Além disso, é muito possível que tentem
impugnar uma venda do BES bom. Os advogados ficarão felizes com o descalabro do
GES e do BES. Adiante.
O risco para os contribuintes não está
no BES mau, mas no BES bom, isto é, no Novo Banco. A solução é inteligente mas
depende de um fator: da venda rápida e por bom preço.
Os acionistas do BES foram expropriados.
É uma expropriação legal, está prevista na lei (e decorre da lei europeia), mas
é ainda assim uma expropriação
Quanto vale o Novo Banco? Vale 4,9 mil
milhões de euros? Dificilmente.
À hora que escrevo, o perímetro de
divisão entre os ativos e passivos do BES e do Novo Banco não é ainda clara.
Mas se é como parece, então ainda pode haver muito dinheiro a perder no Novo
Banco. Sim, a auditoria da KPMG forçou prejuízos muito elevados no BES quanto à
sua exposição ao GES, mas há outras frentes de risco. Por exemplo os fundos de
reestruturação. E ainda os 3,2 mil milhões de euros que o BES Angola deve ao
BES, sobretudo depois de José Eduardo dos Santos ter aproveitado a resolução do
BES para cancelar a garantia do Estado de Angola. E ainda os prejuízos que
estão na carteira de imobiliário.
Bancos como o BCP andaram anos a
provisionar as carteiras de imobiliário, ao contrário do BES. Daqui até à União
Bancária, os testes de stress poderão obrigar o BES a reconhecer mais perdas
potenciais – e portanto os resultados negativos não deverão ficar por aqui. E
um banco vale o valor atual dos seus cash flows futuros. No caso do Novo Banco,
não há sequer o valor da marca a acrescentar. Pelo contrário, a marca retira
valor, porque é desconhecida, o que tem impacto pelo menos sobre a captação de
novos clientes. Mudar de nome faz-se num segundo, criar uma marca fiduciária
dura anos.
Há uma carteira zombie de crédito à
habitação na banca portuguesa desde há anos, gerada pelo desencontro entre as
baixas taxas dos empréstimos do passado a prazos muito elevados e as taxas mais
elevadas de “funding” dos próprios bancos, que têm mais curto prazo. Sendo
prosaico: os bancos deram créditos à habitação a 30 e 40 anos a spreads abaixo
de 1% mas entretanto começaram a pagar mais pelos seus próprios empréstimos. O
reconhecimento desta perda futura tem vindo a ser feita ano após ano noutros
bancos mas está especialmente atrasada no BES. Há muito dinheiro a perder aí. E
mesmo que o “bad bank” tenha ficado com parte dessa carteira (o que não era
possível confirmar à hora a que escrevia), então isso implica uma redução do
balanço do banco bom, o Novo Banco. O banco fica mais pequeno. E um banco mais
pequeno tem de reduzir o crédito concedido, logo está destinado a ganhar menos
dinheiro. Até ser vendido, o Novo Banco enfrenta pois um cenário de geração de
cash flow enfraquecida, de prejuízos e de cortes de custos, seja nos balcões,
nos salários, na venda de operações.
Espero engolir estas palavras mas não
creio que seja possível vender o Novo Banco por 4,9 mil milhões de euros. Se
for depressa, a pressão sobre o preço é maior. Se for lentamente, os custos vão
aumentando, inclusive nas contas públicas, e o banco pode ir desvalorizando o
seu negócio, que não parece estar em condições comerciais pujantes. Além disso,
a dívida do Fundo de Resolução ao Estado é tão grande – sim, daquele valor há
4,5 mil milhões que são dinheiro do Estado, é dívida pública, é pago por
impostos dos portugueses – que os juros a suportar também o serão. A taxa de
juro ainda não é conhecida mas mesmo que seja de 3,5%, muito abaixo do que
pagaram BCP e BPI, o Fundo de Resolução terá de pagar mais de 150 milhões de euros
de juros, o que absorve grande parte da dotação anual do Fundo, que é de 250
milhões.
Banco de Portugal e Governo dizem que,
caso a venda do Novo Banco seja inferior a 4,9 mil milhões de euros, a dívida
ficará no Fundo de Resolução. Hum… Isso quer dizer que seriam os demais bancos
a pagar o prejuízo ao Estado. Duvido muito que isso possa acontecer, até porque
significaria isso sim a dispersão do risco sistémico. Vão os acionistas do BCP,
do BPI ou da Caixa (claro está) pagar o prejuízo? Pago para ver.
Pago mesmo. Porque se o Fundo de
Resolução não compensar a diferença ao Estado, ou a dívida fica lá, tipo PPP a
ser paga ao longo dos anos futuros pelos lucros e impostos dos demais bancos,
ou os contribuintes acabam direta ou indiretamente por perder dinheiro.
Quanto vale o Novo Banco? Vale 4,9 mil
milhões de euros? Dificilmente
Contas são contas e as minhas são estas.
Não é prazer contrariar o entusiasmo geral (para o qual até o PS colaborou) e
concordo que na sexta o desespero já era total: o comunicado do Banco de
Portugal diz que o BES estava a deixar de ser contraparte do BCE e do FED, o
que quer dizer que poderíamos enfrentar uma falência descontrolada. Mas não só
90% do dinheiro que acaba de ser injetado é do Estado como o Novo Banco tem de
ser despachado depressa e por bom preço, caso contrário os contribuintes vão
perder dinheiro, o Estado terá défice e os tansos do costume ouvirão de novo
que andaram a viver acima das suas possibilidades. Garantido está já o efeito
na economia, haja ou não uma boa venda do Novo Banco.
Poucas vezes escrevi esta frase: espero
estar completamente enganado e pedir desculpa até ao final do ano aos leitores.
Antes enganado que esganado. Mas já sinto o pescoço amarfanhar-se.
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