Custa-me admitir que acabamos de desfigurar a CPLP e o sonho de seu mentor,
o Embaixador José Aparecido de Oliveira, com a aceitação interesseira de um ser
estranho ao espírito lusófono. Um país que nada fez na prática para merecer
essa concessão a não ser introduzir às pressas o português como língua oficial,
ao lado do espanhol e do francês(!) e acenar com seus petrodólares de novo-rico
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Todos
infelizmente já esperávamos por isso, desde 2010. Mas o que acaba de acontecer
em Díli, deixa perplexos e frustrados a mim e a muita gente que sente, cultiva
e respeita o que chamamos de Lusofonia. Na X Cimeira na capital do Timor Leste,
os Chefes de Estado e de Governo dos oito países da CPLP – a Presidente Dilma
não compareceu – deram as boas-vindas a um novo membro que, além de
politicamente pouco recomendável, praticamente nada tem a ver com a Lusofonia:
a República da Guiné Equatorial.
Trata-se,
como se sabe, de uma pequena e antiga colónia na costa ocidental da África,
originalmente pertencente a Portugal, que a trocou com a Espanha por um pedaço
de terra hoje brasileira (Ilha de Santa Catarina), na negociação dos Tratados
de Sto. Ildefonso (1777) e El Pardo (1778). Ou seja, até sua independência política
em 1968, tratava-se de uma colónia espanhola que desde então nada mais tinha a
ver com Portugal ou com a Lusofonia.
Do
mesmo modo que desde essa independência tem vivido sob uma ditadura férrea e
cruel, a mais antiga da África, onde pontifica o senhor Teodoro Obiang, o
oitavo governante mais rico do mundo, segundo a revista Forbes, que reina
absoluto sobre um país que flutua hoje em petróleo e sobre uma população
naufragada na maior miséria. Um país desconsiderado pela comunidade
internacional, isolado pela língua (o único a falar espanhol em toda a África),
cuja história, cultura e comportamento nada têm a ver com os ideais que
presidiram a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em 1996.
Todos
que me conhecem sabem de meu respeito e meu entusiasmo pela Lusofonia,
sentimento que cultivava muito antes mesmo de receber a honrosa incumbência de
abrir a Missão do Brasil junto à CPLP, em Lisboa, em 2006, e ocupar por quatro
anos o cargo de Embaixador de meu país junto àquele Organismo internacional. Em
2009 tive o imenso prazer de ser agraciado com o título de Personalidade
Lusófona do Ano, outorgado pela ONG Movimento Internacional Lusófono – MIL, e
entregue pelo Presidente Mário Soares em cerimónia realizada na Academia de
Ciências de Lisboa. Em um dos artigos publicados na imprensa portuguesa na
época, procurei definir o que entendia, e entendo, por Lusofonia:
“Logo,
o que chamamos de Lusofonia é algo que transcende à questão linguística. Podem
não ser povos exclusivamente lusófonos (referia-me aos PALOP), mas são também
lusófonos, ainda que minoritariamente. Quer queira-se, quer não, vale repetir,
há um espaço lusófono ocupado por esses países, e há sobretudo um espírito
lusófono, gerado por uma convivência e uma miscigenação tecida ao longo de
quinhentos anos. E esse diálogo intercultural e interétnico que se estabeleceu
entre descobridor e descobertos, entre colonizador e colonizados – e sem que se
entre aqui em qualquer juízo de valor sobre essa colonização – acabou também
fazendo da língua uma ‘construção conjunta’, na expressão de José Eduardo
Agualusa, onde aspetos sintáticos, fonéticos e lexicais acusam uma grande
variedade, em um processo de permanente enriquecimento do idioma original de
Gil Vicente. Por isso mesmo, Mia Couto diz muito bem, parafraseando Fernando
Pessoa (Bernardo Soares) que ‘minha pátria é a minha língua portuguesa’. Ou
seja, desse rico património imaterial, forjado a partir da experiência vivida
no cruzamento desse triângulo Portugal-Brasil-África ao longo de cinco séculos,
emerge aquilo que chamamos hoje de Lusofonia, uma construção que teve um dia
para começar, mas que não tem uma data para acabar. Algo em permanente
evolução, um fenómeno in fieri.”
Diante
de tudo isso, custa-me admitir que acabamos de desfigurar a CPLP e o sonho de
seu mentor, o Embaixador José Aparecido de Oliveira, com a aceitação
interesseira de um ser estranho ao espírito lusófono. Um país que nada fez na
prática para merecer essa concessão a não ser introduzir às pressas o português
como língua oficial, ao lado do espanhol e do francês(!) e acenar com seus
petrodólares de novo-rico. Portugal foi o último membro a sucumbir, já que até
há pouco resistia solitariamente a essa decisão, enquanto o Brasil há anos se
havia colocado a favor dela… Aliás, caberia perguntar se as reuniões da CPLP
doravante necessitarão dos serviços de interpretação simultânea, já que os
representantes do novo País-Membro desconhecem a língua portuguesa. E quem sabe
se não seria conveniente acrescentar uma letra mais na sigla, que passaria a
ser CPLPA, ou seja, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e Afins?…
A
política externa brasileira, a propósito e como se sabe, relegou a CPLP nos
últimos tempos a um segundo ou terceiro plano, abdicando de uma posição não de
liderança mas de responsabilidade natural, que todos os demais membros esperam
e desejam, decorrente do relativo peso populacional, económico e político do
Brasil. Não nos esqueçamos de que o português é hoje a terceira língua do
Ocidente, com cerca de 245 milhões de falantes, e de que quatro entre cinco
desses falantes são brasileiros.
Por
outro lado, a decisão de Díli passou quase que em brancas nuvens pela imprensa
brasileira, que refletindo a atitude do atual Governo pouco ou nenhuma
importância tem dado às questões da Lusofonia. Bem diferente da midia
portuguesa, em que os principais jornais criticaram severamente a lamentável
incorporação do novo membro da CPLP. A título ilustrativo, encerro minha
indignação com o Editorial do Correio da Manhã, de Lisboa, de 24 de julho
corrente, com o qual estou de pleno acordo:
“Princípios traídos
A CPLP é uma comunidade de países que partilha mais do que uma língua: há
um património comum de história, afinidades, afetos.
Alguns territórios da atual Guiné Equatorial tiveram presença
portuguesa, mas esses laços perderam-se nos finais do século XVIII. Numa ilha
fala-se um crioulo de origem portuguesa, mas esse facto não torna o país de
expressão lusófona. Aliás, a notícia da adesão foi revelada no país em
espanhol, francês e inglês e não na língua de Camões.
Sendo um pequeno Estado, rico em petróleo e recursos naturais, que financia
uma das ditaduras mais corruptas e sanguinárias de África, a adesão à CPLP
representa o acesso a um fórum internacional relevante. Seduzida pelos milhões
do petróleo, a CPLP legitima o regime de Obiang. A adesão da Guiné Equatorial à
CPLP é apenas um negócio que trai os princípios naturais da comunidade dos
países de língua portuguesa.”
Lauro
Moreira | moreira.lauro@gmail.com
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Lauro
Moreira foi o primeiro embaixador do Brasil junto da CPLP, 2006-2010; presidiu
à “Comissão Nacional para as Comemorações do V Centenário do Descobrimento do
Brasil”, em 1997, em 2009 foi agraciado com o título de “Personalidade Lusófona
do Ano”, pelo MIL, e é cidadão honorário da Cidade Velha, Cabo Verde.
http://www.jsn.com.cv/index.php/opiniao/1680-lauro-moreira-cplpa-uma-cplp-desfigurada
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