terça-feira, 26 de agosto de 2014

BES, ou um milagre sem rosas





O que é bom de mais para ser verdade talvez não seja verdade. Na situação limite a que chegámos na sexta-feira, a solução escolhida pelo Banco de Portugal para o BES era a melhor entre as possíveis. Incluindo por razões políticas. Mas dizer que os contribuintes não vão perder dinheiro com o BES é um esconder um girino que virará sapo para muita gente engolir como elefante. Quando as mãos já estão a arder, é melhor tirá-las do fogo. O risco de perdas para o Estado existe. E não é pequeno.

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Tirando alguns radicais destrambelhados, toda a gente quer que o BES corra bem – ou menos mal. O impacto na sociedade é tão grande, e o que sabe já sobre os atos de gestão recentes é tão grave, que não se percebe como é que ainda não há gente detida. O Banco de Portugal não é polícia, mas alguém em Portugal devia ser polícia: por exemplo, a polícia.
Mas o desejo de que as coisas corram bem transforma-se mais em fé do que em certeza. Daí ouvirmos desde domingo uma corrente positivista sobre a solução. Porque, dizem, não é uma nacionalização; e porque, acrescentam, não tem custos para os contribuintes. Veremos. Vejamos:
O BES mau está compreendido. Não é aí que há riscos. No BES mau há apenas um tema, o dos acionistas e obrigacionistas que perdem (quase) todo o seu dinheiro. Não se trata apenas da família Espírito Santo, indelevelmente ligada à gestão (e ao proveito) que produziu o maior escândalo financeiro de sempre em Portugal. Nem se trata apenas de tubarões da alta finança, fundos estrangeiros mais ou menos descomunais que acomodam um prejuízo destes na cova de um dos seus dentes. Há muitos pequenos investidores portugueses, clientes, empregados, pensionistas que investiram em ações do BES e foram defraudados. Muitos eram-no há muitos anos. Outros eram-no há apenas um mês e meio, quando injetaram 1,1 mil milhões de euros no BES que agora valem quase zero. Na escala moral, é melhor que percam os investidores bolsistas do que os contribuintes, mas não se pense que isso não é injusto (para não dizer ilegal) nem que não tem consequências. Claro que tem. E é uma vergonha. Os acionistas ficaram com o mau e perderam o bom.
Não há outra palavra: os acionistas do BES foram expropriados. É uma expropriação legal, está prevista na lei (e decorre da lei europeia), mas é ainda assim uma expropriação. Haverá uma chuva de processos, contra a anterior gestão do BES e certamente também contra reguladores, por terem autorizado um aumento de capital e emissão de dívida subordinada em tempos ruidosos. Além disso, é muito possível que tentem impugnar uma venda do BES bom. Os advogados ficarão felizes com o descalabro do GES e do BES. Adiante.
O risco para os contribuintes não está no BES mau, mas no BES bom, isto é, no Novo Banco. A solução é inteligente mas depende de um fator: da venda rápida e por bom preço.
Os acionistas do BES foram expropriados. É uma expropriação legal, está prevista na lei (e decorre da lei europeia), mas é ainda assim uma expropriação
Quanto vale o Novo Banco? Vale 4,9 mil milhões de euros? Dificilmente.
À hora que escrevo, o perímetro de divisão entre os ativos e passivos do BES e do Novo Banco não é ainda clara. Mas se é como parece, então ainda pode haver muito dinheiro a perder no Novo Banco. Sim, a auditoria da KPMG forçou prejuízos muito elevados no BES quanto à sua exposição ao GES, mas há outras frentes de risco. Por exemplo os fundos de reestruturação. E ainda os 3,2 mil milhões de euros que o BES Angola deve ao BES, sobretudo depois de José Eduardo dos Santos ter aproveitado a resolução do BES para cancelar a garantia do Estado de Angola. E ainda os prejuízos que estão na carteira de imobiliário.
Bancos como o BCP andaram anos a provisionar as carteiras de imobiliário, ao contrário do BES. Daqui até à União Bancária, os testes de stress poderão obrigar o BES a reconhecer mais perdas potenciais – e portanto os resultados negativos não deverão ficar por aqui. E um banco vale o valor atual dos seus cash flows futuros. No caso do Novo Banco, não há sequer o valor da marca a acrescentar. Pelo contrário, a marca retira valor, porque é desconhecida, o que tem impacto pelo menos sobre a captação de novos clientes. Mudar de nome faz-se num segundo, criar uma marca fiduciária dura anos.
Há uma carteira zombie de crédito à habitação na banca portuguesa desde há anos, gerada pelo desencontro entre as baixas taxas dos empréstimos do passado a prazos muito elevados e as taxas mais elevadas de “funding” dos próprios bancos, que têm mais curto prazo. Sendo prosaico: os bancos deram créditos à habitação a 30 e 40 anos a spreads abaixo de 1% mas entretanto começaram a pagar mais pelos seus próprios empréstimos. O reconhecimento desta perda futura tem vindo a ser feita ano após ano noutros bancos mas está especialmente atrasada no BES. Há muito dinheiro a perder aí. E mesmo que o “bad bank” tenha ficado com parte dessa carteira (o que não era possível confirmar à hora a que escrevia), então isso implica uma redução do balanço do banco bom, o Novo Banco. O banco fica mais pequeno. E um banco mais pequeno tem de reduzir o crédito concedido, logo está destinado a ganhar menos dinheiro. Até ser vendido, o Novo Banco enfrenta pois um cenário de geração de cash flow enfraquecida, de prejuízos e de cortes de custos, seja nos balcões, nos salários, na venda de operações.
Espero engolir estas palavras mas não creio que seja possível vender o Novo Banco por 4,9 mil milhões de euros. Se for depressa, a pressão sobre o preço é maior. Se for lentamente, os custos vão aumentando, inclusive nas contas públicas, e o banco pode ir desvalorizando o seu negócio, que não parece estar em condições comerciais pujantes. Além disso, a dívida do Fundo de Resolução ao Estado é tão grande – sim, daquele valor há 4,5 mil milhões que são dinheiro do Estado, é dívida pública, é pago por impostos dos portugueses – que os juros a suportar também o serão. A taxa de juro ainda não é conhecida mas mesmo que seja de 3,5%, muito abaixo do que pagaram BCP e BPI, o Fundo de Resolução terá de pagar mais de 150 milhões de euros de juros, o que absorve grande parte da dotação anual do Fundo, que é de 250 milhões.
Banco de Portugal e Governo dizem que, caso a venda do Novo Banco seja inferior a 4,9 mil milhões de euros, a dívida ficará no Fundo de Resolução. Hum… Isso quer dizer que seriam os demais bancos a pagar o prejuízo ao Estado. Duvido muito que isso possa acontecer, até porque significaria isso sim a dispersão do risco sistémico. Vão os acionistas do BCP, do BPI ou da Caixa (claro está) pagar o prejuízo? Pago para ver.
Pago mesmo. Porque se o Fundo de Resolução não compensar a diferença ao Estado, ou a dívida fica lá, tipo PPP a ser paga ao longo dos anos futuros pelos lucros e impostos dos demais bancos, ou os contribuintes acabam direta ou indiretamente por perder dinheiro.
Quanto vale o Novo Banco? Vale 4,9 mil milhões de euros? Dificilmente
Contas são contas e as minhas são estas. Não é prazer contrariar o entusiasmo geral (para o qual até o PS colaborou) e concordo que na sexta o desespero já era total: o comunicado do Banco de Portugal diz que o BES estava a deixar de ser contraparte do BCE e do FED, o que quer dizer que poderíamos enfrentar uma falência descontrolada. Mas não só 90% do dinheiro que acaba de ser injetado é do Estado como o Novo Banco tem de ser despachado depressa e por bom preço, caso contrário os contribuintes vão perder dinheiro, o Estado terá défice e os tansos do costume ouvirão de novo que andaram a viver acima das suas possibilidades. Garantido está já o efeito na economia, haja ou não uma boa venda do Novo Banco.
Poucas vezes escrevi esta frase: espero estar completamente enganado e pedir desculpa até ao final do ano aos leitores. Antes enganado que esganado. Mas já sinto o pescoço amarfanhar-se.

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