segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Maravilhas do Uíge



Aqui, em Luanda, por toda a Angola acontecem coisas de aterrorizar, de pôr os cabelos em pé. E porquê?! Porque quase toda a gente invoca, faz ressurgir, despertar as trevas há muito adormecidas. É de arrepiar. Quem duvidar que venha até cá e veja, se maravilhe.

«DOSSIER FEITIÇARIA
Feitiço no Uíge, um mistério cabeludo
A inclusão do Uíge na rota dos santuários do feitiço em Angola não acontece por livre arbítrio nem por vontade de tornar a abordagem transversal. É mesmo porque a região vive carregada de histórias que a ligam em força a esse fenómeno tão profundamente obscuro e, ao mesmo tempo, tão irresistivelmente mágico e desencadeante de curiosidade em catadupa.

http://www.opais.net/pt/dossier/?det=6147&id=1911

Os que conhecem esta parcela da geografia, onde a África do imaginário do Mundo se mostra em todo o seu esplendor com a exuberância das suas florestas, a abundância dos seus rios, as montanhas e os picos desafiantes, as ribanceiras medonhas, percebem facilmente que aqui se está diante do cenário ideal para o voo do mito, a perpetuação do mistério e o desdobrar das implicações, mais a mais com a forte presença da ignorância que despreza a Ciência.
As histórias da velha Europa que depois a Humanidade consagrou como clássicas, os escritos dos irmãos Grimm, os relatos do dinamarquês Hans Cristian Anderson, só se tornaram tão “reais”, verosímeis e intemporais, porque falam sempre de florestas que metem medo, com duendes, bruxos, monstros e figuras míticas de duas cabeças e mil ideias malvadas.

Do lado de cá, a savana densa e entupida, que não deixa que o sol a penetre e as gotas puras do orvalho da manhã vivam menos, criou as condições para que as noites de África, os seus caminhos e labirintos, a escuridão e o luar, se entrecruzem com a ideia do feitiço.
Digamos, pois, que qualquer um que tenha nascido ou crescido num cenário assim, não se espantará por ter aprendido a coabitar bastante cedo com a crença no feitiço, ou o lado inexplicável da vida e dos fenómenos, a tentativa mais academicista, se quisermos, de se definir esse conceito estranho.

Óbitos com desculpa
Por cá, nas aldeias todos “aprendem” que as mortes têm sempre um culpado: o feiticeiro. Se uma inocente criança vê a sua missão no mundo encurtada, se calhar pela crónica falta de cuidados primários de saúde no campo profundo, ou fulminada por mal pior como uma meningite ou até uma má formação congénita, logo se “descobre” que é o tio ou o avô mauzão quem acabou com a pobre vida, porque precisa de enriquecer e essa morte faz de moeda de troca no seu arranjo com os gurus da feitiçaria. Se um jovem é mal sucedido na vida e inábil até em obrigações tão mundanas como conseguir para si uma esposa, a imaginação corre célere: há com certeza um tio feiticeiro que não quer o progresso do sobrinho.

Se uma parturiente acaba os seus dias na hora em que se prepara para dar ao mundo um novo rebento, nesse momento tão terno e tão deslumbrante que é o nascimento de um filho, há sempre um feiticeiro por detrás da tragédia. Mas é preciso que se saiba que a mulher desenvolveu uma gravidez de risco com os seus “rijos” 45 anos de idade. A Medicina explica isso facilmente mas na aldeia, onde a Ciência vezes sem conta é trocada pela interpretação empírica e o charlatanismo puro, surge um capítulo de desavença e ódios cruzados mais uma vez ligado ao omnipresente feitiço.

Se um aldeão cresce como empreendedor, faz mais na sua labuta que os outros, aumenta o seu rebanho de cabras ou vende mais café que os seus pares, certamente não se livra da acusação de feitiço por ter conseguido tão notável avanço de vida. Ele que reze para que não tenha o azar de perder o filho, sobrinho ou outro familiar próximo, pois de contrário, será o culpado, pois tão vigoroso enriquecimento só pode estar sustentado pela arte do feitiço que pede em troca vidas, muitas vidas…

No Uíge, vinte e oito crianças acusadas de feitiçaria, rejeitadas pelas famílias, perseguidas e sem amor.
Vivem o inferno que a intolerância aliada ao pensamento obscuro cristalizam.
É um lugar que poucos visitam.
Quase apenas a liderança local da Igreja Católica, que o concebeu e levantou em hora boa. Mais os activistas de algumas ONG.

E um ou outro membro com responsabilidade governamental. Amiúde, do ministério da Reinserção Social e do Instituto Nacional da Criança. Também do governo da província, que um dia deixaram roupas e uma bicicleta.
Quando calha, uma equipa de jornalistas que se interessa por uma história rara de rejeição.
Quem chega ao Uíge por avião, a uns escassos dois km na direcção aeroporto-cidade, do lado direito, num plano elevado, ergue-se uma casa de paredes pintadas de um verde esperança.

Pouco dirá ao transeunte, porque está feita para não chamar a atenção.
Lugar discreto. Minúsculo. Mas cheio de amor.
É ali que a Igreja Católica, num gesto que fala da sua longa vocação de solidariedade e humanismo, albergou as crianças que em diferentes momentos foram lançadas ao desamparo e à condenação.
“Criámos este lugar há seis anos, em Dezembro de 2003. Temos trinta e uma crianças, rapazes todos. A ideia foi do Bispo Dom Francisco da Mata Mourisca, antes dele se reformar. É a alma deste projecto”, diz-nos o catequista Pedro Vieira dos Santos, 68 anos de idade bem disfarçados num corpo enérgico.
É o responsável pela casa, a quem todos obedecem. Um gestor mergulhado em preocupações existenciais do dia-a-dia como conseguir o arroz, a fuba para o funji, a massa, o óleo, o peixe, o feijão, a banana, mas também atento – e muito – à recuperação das crianças e adolescentes que encontram refúgio no centro. Aos seus estudos. À sua formação como homens úteis do amanhã.

As dificuldades do lar não são de negligenciar: “Às vezes falta comida.
Quando a Diocese não pode ajudar, fica-se aflito. Contudo, nunca falhou o jantar ou o almoço. Bem ou mal, as refeições fazem-se. Agora mesmo, por exemplo, só temos fuba de bombó e feijão. O MINARS e o INAC ajudam muito com comida e roupa” – detalha o responsável, que reserva também uma palavra de gratidão para a ONG alemã GAUFF, que ajudou com a pintura da casa e ergueu o muro de vedação.
Visitámos o lar, baptizado S. José no dia da sua inauguração (18 de Dezembro de 2003), numa segunda-feira de aulas normais. Por isso o corrupio minguado, só ali estavam quem estuda à tarde.
Perdemos a oportunidade de conhecer os mais novos dos internos, João Maloba e Joaquim Alfredo, envoltos nas malhas da feitiçaria com curtíssimos e inocentes 7 anos de idade. Andam na primeira classe e já haviam abalado, a pé, para a escola que frequentam.

Os colegas falam deles com um misto de pena e admiração, como se não fossem eles próprios heróis iguais de uma mesma novela surreal.»
Por: Luís Fernando, no Uige Fotos: Jacinto Figueiredo

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