domingo, 26 de outubro de 2014

Para onde vai o Millennium BCP





Nasceu em 1986 e revolucionou a forma de fazer banca em Portugal. Foi uma referência na Europa, mas a guerra de poder iniciada em 2007 e a crise financeira internacional pregaram-lhe algumas partidas. No final da atual reestruturação, como ficará o novo BCP?


Longe vão os tempos em que o BCP era apresentado internacionalmente como um caso de estudo e de excelência empresarial. A escola francesa de negócios Insead chegou a apresentá-lo como um sucesso na aplicação das tecnologias de informação à estratégia de negócio. E hoje?
Hoje, aos 27 anos de idade, o banco mudou muito. A crise financeira internacional que se iniciou em 2007 juntou-se aos graves desentendimentos entre acionistas e administradores, que nesse ano lançaram o banco no caos. A questão que se coloca é: que BCP teremos quando a tempestade passar? O que vai restar do que de melhor o banco tinha no passado? Será um banco mais ágil, mais focado em zonas de elevado potencial de crescimento? O centro de decisão manter-se-á em Portugal, apesar do crescente peso angolano no capital? Manter-se-á o maior banco privado português e gerará valor para os acionistas? E conseguirá pagar o dinheiro que pediu ao Estado no prazo previsto?
O banco debate-se com os maiores desafios da sua história: tem de arrumar a casa, emagrecendo a estrutura, através do corte de custos, para voltar a ser rentável. Desafios comuns a todos os seus concorrentes, mas mais significativos para um banco cuja estrutura sempre foi mais pesada. O BCP teve de pedir ao Estado 3000 milhões de euros e vai ter de os pagar até 2017. Uma situação aflitiva que a comissão executiva liderada por Nuno Amado, desde 28 de fevereiro de 2012, tem vindo a tentar resolver.
A trabalhar na banca desde 1985, Nuno Amado passou pelo Citibank, Banco Fonsecas & Burnay, Deutsche Bank e grupo Santander, onde esteve de 1997 até ao ano passado, de onde transitou para o BCP, uma transferência que surpreendeu e que muitos consideraram arriscada. O banqueiro tem tido uma tarefa árdua que não lhe dá descanso. Assumiu que iria limpar o que teria de limpar e o resultado da limpeza está nos assustadores prejuízos de 1,2 mil milhões que apresentou no final do ano passado. Este ano não está muito melhor. Até 30 de junho teve prejuízos de 488,2 milhões de euros.
Nuno Amado tem três grandes objetivos para cumprir: tornar o banco rentável, dotá-lo de uma estrutura acionista mais forte e apostar nas operações externas capazes de criar valor para os acionistas.
Revolução está em curso

A situação levou o banco a pedir ajuda ao Estado português, tal como fizeram outros bancos portugueses mas também noutros países na Europa. Uma ajuda que lhe está a custar não só o pagamento de elevados juros, que desde junho de 2012 e até ao final deste ano deverão rondar os 400 milhões de euros, mas também a imposição de uma série de medidas pesadas que aceleraram a reestruturação do banco, que já estava em curso.
São medidas demasiado duras? "Tinham de acontecer", afirma Joe Berardo, um dos poucos acionistas que tem participações qualificadas no banco, de cerca de 3,06%. São ao todo seis acionistas com participações acima de 2%, que a 30 de junho deste ano correspondiam a 35% do capital, entre os quais se destaca, com um peso esmagador, a Sonangol, que tem 19,44%. Se juntarmos a esta posição os 2,6% imputados à Interoceânico, o capital angolano conhecido no banco português atinge já os 22,04% (ver texto sobre seguinte sobre a estrutura acionista).
Joe Berardo considera que a ajuda dos Estados aos bancos é "envenenada", devido aos juros elevados. Refere mesmo que o corte de custos não é tão fácil como muita gente pensa, porque tem elevados custos associados. Mas está convencido de que não há alternativa.
Para justificar a ajuda ao Estado, o BCP obrigou-se a reduzir a dimensão em Portugal através da redução de sucursais e colaboradores, de que resultará uma redução dos custos com o pessoal na ordem dos 25% em 2015, quando comparados com os custos de 2012, 815,4 milhões de euros.
Esta é uma das medidas mais complicadas de implementar, já que se soma a uma redução que já tinha sido operada nos últimos anos nas condições de trabalho dos colaboradores do banco. A administração já deixou claro que prefere cortar nos salários, caso contrário avançará para um despedimento coletivo, que poderia envolver mais 1250 trabalhadores, a somar aos que já saíram.
Mas a fatura a pagar pelo BCP não fica por aqui: a venda de ativos é outra tarefa que teve de acelerar por imposição da Direção-Geral de Concorrência da União Europeia (DGCom). Neste âmbito, o banco tem de vender a sua operação na Roménia e finalizar a saída da Grécia, sair da Millennium Gestão de Ativos e vender as carteiras de crédito do BCP Bank & Trust e BCP Banque Privé. Ao mesmo tempo, poderá ser obrigado a vender a participação no banco que tem na Polónia, no caso de o BCP não reembolsar 2,3 mil milhões de euros das obrigações de conversão condicionada em ações (Coco's) até ao final de 2016.
Tudo para, como dizia Nuno Amado há um ano ao Expresso, o BCP voltar a ser um "banco privado e muito ativo na economia portuguesa". O presidente do BCP, que não aceitou falar à Exame nesta altura, porque ainda está a negociar dossiês que considera sensíveis e a concretizar algumas das imposições da DGCom referia, então, que um dos problemas de Portugal é o "amiguismo". "Havia aqui uma rede de interesses que dificultava o tema (da governação)". E deixou claro que o BCP não voltaria a financiar "operações de especulação ou de tomada de posições hostis ou não", garantindo que o banco iria executar as dívidas a que está obrigado independentemente de os devedores serem acionistas ou não.
O banco terá de fazer a sua própria reestruturação, mas "há alguns fatores que não controla", afirma Paulo Pinho, professor na Universidade Nova de Lisboa e especialista em banca. Por exemplo, se a economia não crescer sustentadamente nos próximos dois anos "será muito difícil o BCP devolver ao Estado até 2017 o que pediu emprestado". E mais, não será apenas a economia nacional a dar o veredito, pois é preciso que a economia internacional também cresça. "Se as economias crescerem, isso sim, terá impacto na recuperação dos créditos e nos ganhos possíveis na carteira de dívida pública", o que é válido para qualquer instituição bancária, conclui. Já uma fonte do setor da banca refere que, dadas as crescentes exigências europeias, "será muito difícil para o sistema financeiro, mesmo para os bancos que não pediram dinheiro ao Estado, não precisarem de mais capital". Até porque vêm aí novas regras incluídas no "pacote Basileia III" e tudo vai depender do que vai contar em termos de capital para a banca em geral.
O BCP, ainda no âmbito dos compromissos assumidos com a Comissão Europeia, terá de atingir um máximo de 120% para o crédito sobre depósitos em 2015-17, que em junho deste ano estava nos 123%; um máximo de 50% para o rácio de eficiência em 2016-17 (77% em junho); a manutenção de um nível mínimo do rácio Core Tier 1, que cumpra os requisitos regulatórios de capital (estava nos 12,5% em junho); e uma rentabilidade sobre os capitais próprios (ROE) superior a 10% em 2016-17. Fica ainda proibido de fazer aquisições, de ter práticas comerciais agressivas, de pagar dividendos e de financiar a compra de ações ou instrumentos híbridos de capital emitidos por si próprio. Terá de adaptar a remuneração dos corpos sociais e colaboradores "em função dos objetivos de longo prazo" e "restringir os negócios com partes relacionadas".
Um exemplo dos anos 90

Criado em 1986, o BCP não demorou muito até se tornar o maior banco privado nacional, sob a liderança de Jardim Gonçalves, que foi o seu presidente até 2005, ano em que passou o testemunho a Paulo Teixeira Pinto uma sucessão que acabou por não correr bem e que culminou com a guerra de acionistas de 2007. "Portugal passou a ter um banco de referência a nível europeu que criava valor para os clientes e acionistas", refere Paulo Pinho. De certa forma, "o banco foi pioneiro no que toca à inovação tecnológica e à estratégia que seguiu até 2000. Mas o que veio depois disso começou a destruir valor", acrescenta.
O maior banco privado português cresceu em todas as direcções, mas perdeu-se no propósito que muitos dizem ter sido a génese da sua fundação: servir os clientes e criar valor para o acionista. A ambição e a mudança de estratégia deitaram abaixo valores que agora o banco quer recuperar, referiu à Exame fonte do sector bancário. "Há alturas marcantes que têm a ver com a estratégia de crescimento, a estrutura acionista e as ambições pessoais de quem esteve ao comando do banco na última década", afirma Paulo Pinho que acrescenta que o papel do fundador, Manuel Violante, foi sempre subestimado e que a saída de alguns acionistas, como Américo Amorim, ditou percursos diferentes.
A estratégia de aquisições através da qual absorveu marcas como o BPA, Sotto Mayor e Mello levou a fortes necessidades de capital que penalizaram a remuneração dos accionistas e o valor das ações. Agora, a estratégia do BCP terá de assentar no negócio bancário puro e duro. "O banco que estamos a preparar não tem segredos debaixo do tapete", diz um alto quadro do banco.
A receita que na década de 80 foi distintiva para o sucesso de um banco que se revelou pioneiro em muitas áreas, nomeadamente a área de inovação tecnológica, e numa visão de expansão internacional e de crescimento sustentado, contando com uma máquina comercial agressiva, é a que terá de fazer sair o BCP da situação em que se encontra, adianta a mesma fonte do BCP. Mas também não se pode esquecer que, apesar de todos estes ingredientes terem permitido ao banco crescer e ganhar quota de mercado no imediato, também, isso sabe-se hoje, dotaram o banco de elevados custos que se repercutiram no futuro, criando muitas vezes uma imagem ilusória de crescimento sustentado.
Hoje o BCP continua a ter uma máquina comercial bem oleada, apesar dos sucessivos cortes a que tem sido sujeita. "Neste momento, o BCP tem pela primeira vez uma equipa de gestão profissional que está a fazer o trabalho de casa", afirma Paulo Pinho.
"De 2000 até hoje o banco atravessou um período altamente negativo", adverte, referindo que "o BCP está a arrumar a casa e a registar níveis de imparidades volumosas e a fazer o que muitos bancos do sistema com problemas idênticos ou outros problemas deviam e não estão a fazer, porque estão a 'empurrar os problemas com a barriga'". O professor acrescenta que, se o BCP tivesse feito o trabalho de casa pelo menos há 10 anos, "poderia estar noutra situação" hoje.
Portugal, Polónia, Angola e Moçambique

Apesar de a distância para o BES se ter reduzido, o BCP continua a poder exibir os galões de maior instituição bancária privada de Portugal. A 30 de junho tinha a segunda maior rede de sucursais em Portugal (797), com uma quota de mercado de 19,2% no crédito e 18,6% nos depósitos.
No final do primeiro semestre de 2013, as operações em Portugal representavam 78% do total de ativos, 79% do total de crédito a clientes (bruto) e 70% do total de depósitos de clientes.
É em Moçambique que tem a maior quota de mercado de entre os mercados onde está presente 33,2% no crédito e 31,6% nos depósitos, contando com 1,1 milhões de clientes. Em Angola as quotas estavam, a 30 de junho, nos 2,8% quer no crédito quer nos depósitos. E na Polónia era 4,8% para o crédito e 5,3% para os depósitos.
É precisamente nestes mercados externos que o banco vai apostar para criar valor, de forma a compensar o emagrecimento da estrutura e negócio em Portugal. Um alto quadro do banco afirma que, se tudo correr bem, "quando o país começar a crescer, o BCP começará a ser rentável. O banco está a resolver os problemas e a declarar imparidades volumosas, ao mesmo tempo que pegou na sua carteira de imóveis e começou a vendê-los limpando este rastro negativo do balanço".
Para um dos ex-administradores que se despediu do BCP no início de 2000, a estratégia do banco desde então "não foi correta. Nunca se devia ter avançado para expansões em países onde não se fala a mesma língua, nem começar a tomar posições em empresas, por exemplo na EDP, cujo retorno não é imediato. e entre as quais existe uma relação creditícia, como aconteceu com a Brisa, a Cimpor e mesmo a Teixeira Duarte", refere, acrescentando que "o BCP só voltará aos lucros depois de pagar o que pediu ao Estado e isso vai demorar muito tempo. Quanto a distribuir dividendos aos accionistas, ainda vai demorar mais".
Apesar de a "limpeza" em curso no banco não perspectivar a distribuição de dividendos a médio prazo, Nuno Amado conseguiu atrair, em setembro do ano passado, 500 milhões de euros num aumento de capital, uma operação que mudou significativamente a estrutura accionista, mas não conseguiu atrair nenhum investidor europeu de referência.
Um líder consensual

Nuno Amado foi o homem escolhido pelos acionistas para substituir Carlos Santos Ferreira, que tinha vindo da Caixa Geral de Depósitos e no início de 2008 tomou o banco por pressão de alguns acionistas em sintonia com o Governo da altura, liderado por José Sócrates. Santos Ferreira substituiu Filipe Pinhal na presidência, num movimento que ditou a saída dos administradores conotados com Jardim Gonçalves. Desde então, os processos em tribunal multiplicaram-se. Não só por causa de operações com ações do banco através de sociedades sedeadas em paraísos fiscais, mas também devido a investimentos de pequenos acionistas. Quatro ex-administradores Jardim Gonçalves, Filipe Pinhal, António Rodrigues e Christopher de Beck -aguardam até ao final do ano pela sentença devida à acusação de crime de manipulação de mercado e falsificação de documentos. Mas há também os processos de contra-ordenação dos supervisores. O julgamento relativo ao Banco de Portugal, que foi anulado, vai ser repetido, enquanto o da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários foi alvo de recurso por parte dos arguidos.
Quando toda a poeira assentar, o balanço que vier a ser feito terá inevitavelmente de apontar para uma mudança estrutural do banco, que passa a concentrar-se mais em África e eventualmente no Brasil, depois de ter saído dos Estados Unidos, Canadá, Grécia, Turquia e Roménia. E passou a ter menos acionistas de referência, sobretudo portugueses, para ter um grande acionista incontornável, a Sonangol, por onde as grandes decisões terão sempre de passar.
REDUÇÃO DE CUSTOS

Cortes nos salários (ou despedimentos) a doer
Diminuir custos em 25%. O compromisso do BCP assumido com a Direção-Geral da Concorrência da União Europeia (DGCom) de reduzir em 25% os custos com o pessoal promete ser um processo longo e desgastante.
Baixar salários. As negociações para baixar os salários aos colaboradores do banco começaram em meados de outubro, embora a primeira abordagem com os sindicatos e a comissão de trabalhadores (CT) tenha sido feita logo em setembro.
Alterar a contratação colectiva. Fonte da Federação dos Sindicatos Bancários do Sul e Ilhas, Norte e Centro (FESAB) referia a meio do mês de outubro que ainda se estava a ver se legalmente era possível "alterar o quadro da contratação coletiva", acrescentando que "a principal preocupação é a defesa dos postos de trabalho, mas tudo terá de ser bem analisado".
Salários mais magros. O banco não adiantava até onde pretendia levar estas negociações, mas os cortes poderão ir até 10%, à semelhança da tabela que o Governo quer aplicar à Função Pública. Os salários mais baixos não terão cortes superiores a 2%, havendo depois um corte progressivo.
À mesa com os sindicatos. Se as negociações com os sindicatos falharem "entramos no reino da chantagem", diz um membro da CT afeto à CGTP, que recorda que este processo começou no ano passado e implicava apenas 600 colaboradores, tendo acabado por chegar a 1170. "Agora, afinal, já se colocam em causa mais 1250 trabalhadores".
Cortar ou despedir? Outra fonte ligada ao processo negocial afirma que "se o BCP e os sindicatos chegarem a acordo será uma oportunidade única de marcar a diferença". Estamos a falar de cortes em 8744 trabalhadores ou o despedimento de 1250 até 2015.
O futuro. O caminho para se evitar despedimentos só depende, segundo referiu um sindicalista da FESAB à Exame, do enquadramento legal que for dado e se o que é proposto é não apenas legal mas também constitucional. "A matéria é muito complexa", desabafa.

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