No dia 6 de junho de 2012 nossa realidade
ficou menos fantástica. Fecha os olhos à luz deste mundo uns dos maiores ícones
da literatura universal. Ele que nos transportou a tantos outros mundos por
meio de uma literatura escorreita, inquietante e prolífica agora nos deixa
definitivamente.
Morre aos 91 anos o escritor norte-americano
Ray Douglas Bradbury depois de lutar bravamente durante anos contra os efeitos
degenerativos de um derrame sofrido em 1999. Deixa como legado além de contribuições
significativas para a televisão e o cinema, uma vasta obra literária
contabilizada em mais de 600 contos, 30 romances traduzidos para 36 idiomas,
distribuídos em mais de 60 livros publicados, com mais de 8 milhões de cópias
vendidas, em todo o mundo.
Apontado pela Putnan’s Publishers como um dos
maiores mestres da Ficção Científica universal (juntamente com Isaac Asimov,
Arthur Clark e André
Carneiro).
Foi dono de uma prosa poética inconfundível,
grande responsável pelo reconhecimento desse gênero literário, denotando um
autor preocupado com a vida espiritual da Humanidade diante do materialismo da
sociedade.
Uma de suas obras mais célebres o romance
“Farenheit 451″ (título que se refere à temperatura de combustão do papel)
escrita durante os piores anos da Guerra Fria, denuncia os males da censura e
do controle do pensamento em um Estado Totalitário que proíbe a publicação e a
leitura de livros. Foi adaptada ao cinema pelo diretor francês François
Truffaut e constitui um dos mais importantes marcos na história do cinema de
FC.
Em Farenheit 451, destaca-se o alerta sobre a
ditadura do senso comum, ali representada pela comunicação de massa (e a
consequente massificação da humanidade) frente à liberdade de pensar e a do
sentir individual.
Também se destacam os livros de contos
“Crônicas Marcianas” e “Frutos Dourados do Sol” repletos de simbolismo e de
imagens poéticas.
Com as tintas da sensibilidade e do humanismo
Bradbury constrói paisagens e mundos nunca visitados denunciando o racismo, a
arbitrariedade, o apelo à violência e mais que tudo a falência dos valores
humanos perante a voracidade de um progresso inconsciente e autofágico.
Em Crônicas Marcianas é fácil intuir o
paralelo histórico de todo processo de conquista e colonização. Os seres
humanos vão para Marte como antes os europeus, cheios de sonhos ou expulsos
como párias de suas terras, migraram para as colônias do Novo Mundo. Vão para Marte
como os colonizadores norte-americanos migraram para o “Oeste Bravio”. Levando
consigo a teia intrincada de suas aspirações como também a malha distorcida de
todas as suas misérias.
No trecho do conto “Gafanhotos” a linguagem
poética está a serviço desta narrativa, que ouso traduzir livremente assim:
“Os foguetes incendiaram os prados desnudos,
transformando as rochas em lava, a madeira em carvão, a água em vapor,
transmutando areia e sílica em vidro verde, que refletia a invasão como um
espelho estilhaçado”.
“Os foguetes chegaram como tambores
estrondando na noite e desceram como gafanhotos; um enxame envolto em florações
róseas de róseas fumaças”.
“E dos foguetes saíram homens com martelos
nas mãos para moldar aquele mundo ímpar numa forma familiar aos seus olhos,
eliminando tudo o que fosse estranho”.
“Com as bocas cheias de pregos, quais
carnívoros de dentes de aço, passando-os rapidamente para suas mãos à medida
que suas marteladas erguiam casas de madeira, pregavam coberturas com telhas
finas para eliminar o mistério das estrelas e colocavam cortinas para conter a
noite”.
“E quando os carpinteiros terminaram,
chegaram suas mulheres com vasos de flores, chitas e frigideiras. Instalaram
suas cozinhas barulhentas que superassem o silêncio de Marte, restrito do outro
lado de tantas portas e de tantas janelas veladas por tantas cortinas”.
Quando questionado pelo pessimismo desses
textos, Bradbury preconiza que em nenhum momento tentava prever esse tipo
futuro, mas sim, nos alertar a evitá-lo.
Em “Frutos dourados do Sol” o autor nos
premia com vários contos em que o elemento fantástico (quando presente) alia-se
à trama como um simples pretexto para nos convidar à reflexão.
Apenas para citar um exemplo, no conto “Casa
de Força” a narrativa está a serviço de uma profunda reflexão sobre a vida e a
necessidade humana do contato com o divino (ou com o universo) quando é
confrontada com sua finitude.
O argumento do conto é muito simples:
Berty e sua esposa cavalgam para ir a um
funeral. Abrigam-se de uma eminente tempestade em uma casa de força e depois
seguem sua jornada.
No entanto a forma como esta singela história
é contada é simplesmente cativante:
Quanto ao estado de espírito da esposa de
Berty (e à sua riqueza moral) quando está refletindo sobre sua completa falta
de religiosidade frente à morte de sua mãe, o autor nos brinda com o seguinte
(na belíssima tradução de Sérgio Flaksman):
– É que eu nunca tive razões para me sentar
em uma igreja — respondia. Não era veemente a respeito. Simplesmente andava e
vivia e movia as mãos, que eram lisas e pequenas como seixos. O trabalho havia
polido as unhas dessas mãos com um esmalte que não vinha em vidros. Tocar
crianças as havia suavizado, criar crianças as havia feito moderadamente
severas, e o amor de um marido as havia feito gentis.
E agora a morte as fazia tremer.
Ao descrever o personagem Berty o autor nos
premia com o seguinte:
“Berty a conhecia e sabia que não era mulher
de se irritar. Por isso, a irritação não se transmitiu para ele. Ele era um
jarro tampado; o conteúdo era de confiança. Podia chover do lado de fora que a
mistura não se alterava.”
O desfecho desta história é fantástico.
Evidentemente não estragarei aqui o prazer do
leitor em confirmar esta minha avaliação por si mesmo.
Apenas quero ressaltar a maestria deste
genial escritor, não apenas como uma singela homenagem que aqui se mescla ao
mais profundo pesar.
Queria acima de tudo ressaltar minha
gratidão.
A gratidão do jovem que fui e — por que não —
de toda uma geração.
Uma geração que em tenra idade encontrou nas
páginas de seus admiráveis livros motivo de inspiração para lutar por um futuro
em que não sejamos traídos por nossos próprios desejos e também por uma ciência
que seja a solução e não a fonte de nossos maiores problemas.
Nas palavras de Walt Whitman:
“Eu canto o Corpo Elétrico;
As hostes dos que me circundam,
e que circundo também;
As hostes dos que me circundam,
e que circundo também;
Não me deixam, até que os acompanhe,
responda-lhes,
descorrompa-os,
responda-lhes,
descorrompa-os,
E os preencha com a carga da Alma.
Descanse em paz, Ray Bradbury (1920-2012).
-o-
[Foto: Wikipedia]
[Leia os outros artigos de
Mustafá Ali Kanso]
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