quarta-feira, 10 de março de 2010

A minha modesta homenagem a Alda do Espírito Santo




Biografia
Alda Espirito Santo, também conhecida por Alda Graça, nasceu em São Tomé em 1926 e teve a sua educação em Portugal. Ainda freqüentou a Universidade, mas teve que abandonar, em parte devido às suas atividades políticas, mas também por motivos econômicos.

http://betogomes.sites.uol.com.br/AldaEspiritoSanto.htm

Sendo uma das mais conhecidas poetizas africanas de língua portuguesa, ocupou alguns cargos de relevo nos governos de São Tome e Príncipe, nomeadamente foi Ministra da Educação e Cultura, Ministra da Informação e Cultura e Deputada. Os seus poemas aparecem nas mais variadas antologias lusófonas, bem como em jornais e revistas de São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique. Depois de publicar "O Jogral das Ilhas, em 1976, publicou em 1978 "É nosso o solo sagrada da terra", o qual é até ao momento o seu trabalho mais importante.

Obra poética:
O Jogral das Ilhas, 1976, São Tomé, e. a.;
É Nosso o Solo Sagrada da Terra, 1978, Lisboa, Ulmeiro.

Angolares1
Canoa frágil, à beira da praia,
panos preso na cintura,
uma vela a flutuar...
Caleima2, mar em fora
canoa flutuando por sobre as procelas das águas,
lá vai o barquinho da fome.
Rostos duros de angolares1
na luta com o gandu3
por sobre a procela das ondas
remando, remando
no mar dos tubarões
p'la fome de cada dia.

Lá longe, na praia,
na orla dos coqueiros
quissandas4 em fila,
abrigando cubatas,
izaquente5 cozido
em panela de barro.

Hoje, amanhã e todos os dias
espreita a canoa andante
por sobre a procela das águas.
A canoa é vida
a praia é extensa
areal, areal sem fim.
Nas canoas amarradas
aos coqueiros da praia.
O mar é vida.
P'ra além as terras do cacau
nada dizem ao angolar1
"Terras tem seu dono".

E o angolar1 na faina do mar,
tem a orla da praia
as cubatas de quissandas4
as gibas pestilentas
mas não tem terras.

P'ra ele, a luta das ondas,
a luta com o gandu3,
as canoas balouçando no mar
e a orla imensa da praia.

(É nosso o solo sagrado da terra)
1 - Angolar: grupo étnico são-tomense. Segundo a tradição portuguesa, sem confirmação científica, teria naufragado, em frente ao extremo sul da Ilha de São Tomé, um barco transportando cativos (1550). Estes, logrando alcançar a costa, teriam dado origem ao Povo Angolar. Admite-se, todavia, que os angolares tenham alcançados a Ilha por seus próprios meios, provenientes do Continente Africano;

2 - Caleima: ondulação forte do mar;
3 - Gandu: tubarão;
4 - Quissanda: tapumes feitos com folhas de palmeira;
5 - Izaquente: frutos cujas sementes são caracterizadas por um alto poder energético.

Avó Mariana
Avó Mariana, lavadeira
dos brancos lá da Fazenda
chegou um dia de terras distantes
com seu pedaço de pano na cintura
e ficou.
Ficou a Avó Mariana
lavando, lavando, lá na roça
pitando seu jessu1
à porta da sanzala
lembrando a viagem dos seus campos de sisal.

Num dia sinistro
p'ra ilha distante
onde a faina de trabalho
apagou a lembrança
dos bois, nos óbitos
lá no Cubal distante.

Avó Mariana chegou
e sentou-se à porta da sanzala2
e pitou seu jessu1
lavando, lavando
numa barreira de silêncio.

Os anos escoaram
lá na terra calcinante.

- "Avó Mariana, Avó Mariana
é a hora de partir.
Vai rever teus campos extensos
de plantações sem fim".

- "Onde é terra di gente?
Velha vem, não volta mais...
Cheguei de muito longe,
anos e mais anos aqui no terreiro...
Velha tonta, já não tem terra
Vou ficar aqui, minino tonto".

Avó Mariana, pitando seu jessu1
na soleira do seu beco escuro,
conta Avó Velhinha
teu fado inglório.
Viver, vegetar
à sombra dum terreiro
tu mesmo Avó minha
não contarás a tua história.

Avó Mariana, velhinha minha,
pitando seu jessu1
na soleira da senzala
nada dirás do teu destino...
Porque cruzaste mares, avó velhinha,
e te quedaste sozinha
pitando teu jessu1?

(É nosso o solo sagrado da terra)

1 - Jessu: cachimbo de barro;
2 - Sanzala: aldeia.
Descendo o meu bairro

(É nosso o solo sagrado da terra)

Em torno da minha baía
Aqui, na areia,
Sentada à beira do cais da minha baía
do cais simbólico, dos fardos,
das malas e da chuva
caindo em torrentes
obre o cais desmantelado,
caindo em ruínas
eu queria ver à volta de mim,
nesta hora morna do entardecer
no mormaço tropical
desta terra de África
à beira do cais a desfazer-se em ruínas,
abrigados por um toldo movediço
uma legião de cabecinhas pequenas,
à roda de mim,
num vôo magistral em torno do mundo
desenhando na areia
a senda de todos os destinos
pintando na grande tela da vida
uma história bela
para os homens de todas as terras
ciciando em coro, canções melodiosas
numa toada universal
num cortejo gigante de humana poesia
na mais bela de todas as lições:

HUMANIDADE

(É nosso o solo sagrado da terra)

Ilha nua
Coqueiros e palmares da Terra Natal
Mar azul das ilhas perdidas na conjuntura dos séculos
Vegetação densa no horizonte imenso dos nossos sonhos.
Verdura, oceano, calor tropical
Gritando a sede imensa do salgado mar
No deserto paradoxal das praias humanas
Sedentas de espaço e de vida
Nos cantos amargos do ossobô1
Anunciando o cair das chuvas
Varrendo de rijo a terra calcinada
Saturada do calor ardente
Mas faminta da irradiação humana
Ilhas paradoxais do Sul do Sará
Os desertos humanos clamam
Na floresta virgem
Dos teus destinos sem planuras...

(É nosso o solo sagrado da terra)

1 - 0ssobô: ave de belas cores, cujo canto, segundo a tradição, anuncia chuva. Tem ainda a força mítica que o associa a regiões paradisíacas.

Lá no água grande
Lá no "Água Grande" a caminho da roça
negritas batem que batem co'a roupa na pedra.
Batem e cantam modinhas da terra.

Cantam e riem em riso de mofa
histórias contadas, arrastadas pelo vento.

Riem alto de rijo, com a roupa na pedra
e põem de branco a roupa lavada.

As crianças brincam e a água canta.
Brincam na água felizes...
Velam no capim um negrito pequenino.

E os gemidos cantados das negritas lá do rio
ficam mudos lá na hora do regresso...
Jazem quedos no regresso para a roça.

(É nosso o solo sagrado da terra)

No mesmo lado da canoa
As palavras do nosso dia
são palavras simples
claras como a água do regato,
jorrando das encostas ferruginosas
na manhã clara do dia-a-dia.

É assim que eu te falo,
meu irmão contratado numa roça de café
meu irmão que deixas teu sangue numa ponte
ou navegas no mar, num pedaço de ti mesmo em luta
[com o gandu1
Minha irmã, lavando, lavando
p'lo pão dos seus filhos,
minha irmã vendendo caroço
na loja mais próxima
p'lo luto dos seus mortos,
minha irmã conformada
vendendo-se por uma vida mais serena,
aumentando afinal as suas penas...
É para vós, irmãos, companheiros da estrada
o meu grito de esperança
convosco eu me sinto dançando
nas noites de tuna
em qualquer fundão, onde a gente se junta,
convosco, irmãos, na safra do cacau,
convosco ainda na feira,
onde o izaquente2 e a galinha vão render dinheiro.
Convosco, impelindo a canoa p'la praia
juntando-me convosco
em redor do voador panhá3
juntando-me na gamela
vadô tlebessá4
a dez tostões.

Mas as nossas mãos milenárias
separam-se na areia imensa
desta praia de S. João
porque eu sei, irmão meu, tisnado como eu p'la vida,
tu pensas irmão da canoa
que nós os dois, carne da mesma carne
batidos p'los vendavais do tornado
não estamos do mesmo lado da canoa.

Escureceu de repente.
Lá longe no outro lado da Praia
na ponta de S. Marçal
há luzes, muitas luzes
nos quixipás5 sombrios...
O pito dóxi6 arrepiante, em sinais misteriosos
convida à unção desta noite feiticeira...
Aqui só os iniciados
no ritmo frenético dum batuque de encomendação
aqui os irmão do Santu
requebrando loucamente suas cadeiras
soltando gritos desgarrados,
palavras, gestos,
na loucura dum rito secular.

Neste lado da canoa, eu também estou irmão,
na tua voz agonizante, encomendando preces, juras,
[ Maldições.

Estou aqui, sim, irmão
nos nozados7 sem tréguas
onde a gente joga
a vida dos nossos filhos.
Estou aqui, sim, meu irmão
no mesmo lado da canoa.

Mas nós queremos ainda uma coisa mais bela.
Queremos unir as nossas mãos milenárias,
das docas dos guindastes
das roças, das praias
numa liga grande, comprida
dum pólo a outro da terra
p'los sonhos dos nossos filhos
para nos situarmos todos do mesmo lado da canoa.

E a tarde desce...
A canoa desliza serena,
rumo à Praia Maravilhosa
onde se juntam os nossos braços
e nos sentamos todos, lado a lado,
na canoa das nossas praias.

(É nosso o solo sagrado da terra)

1 - Gandu: tubarão;
2 - Izaquente: frutos cujas sementes são caracterizadas por um alto poder energético;
3 - Vadô Panhá: espécie de peixe voador que no tempo seco se apanha na praia;
4 - Vadô tlebessá: peixe voador que se distingue do vadô panhá por apenas se pescar em alto mar;
5 - Quixipás: barracas feitas com folhas de palmeira;
6 - Pitu dóxi: "apito doce", literalmente. Flautista virtuoso;
7 - Nozado: velório.

Onde estão os homens caçados neste vento de loucura
O sangue caindo em gotas na terra
homens morrendo no mato
e o sangue caindo, caindo...
Fernão Dias para sempre na história
da Ilha Verde, rubra de sangue,
dos homens tombados
na arena imensa do cais.
Ai o cais, o sangue, os homens,
os grilhões, os golpes das pancadas
a soarem, a soarem, a soarem
caindo no silêncio das vidas tombadas
dos gritos, dos uivos de dor
dos homens que não são homens,
na mão dos verdugos sem nome.
Zé Mulato, na história do cais
baleando homens no silêncio
do tombar dos corpos.
Ai, Zé Mulato, Zé Mulato.
As vítimas clamam vingança
O mar, o mar de Fernão Dias
engolindo vidas humanas
está rubro de sangue.
- Nós estamos de pé -
nossos olhos se viram para ti.
Nossas vidas enterradas
nos campos da morte,
os homens do cinco de Fevereiro
os homens caídos na estufa da morte
clamando piedade
gritando pela vida,
mortos sem ar e sem água
levantam-se todos
da vala comum
e de pé no coro de justiça
clamam vingança...
... Os corpos tombados no mato,
as casas, as casas dos homens
destruídas na voragem
do fogo incendiário,
as vias queimadas,
erguem o coro insólito de justiça
clamando vingança.
E vós todos carrascos
e vós todos algozes
sentados nos bancos dos réus:
- Que fizeste do meu povo?...
- Que respondeis?
- Onde está o meu povo?
...E eu respondo no silêncio
das vozes erguidas
clamando justiça...
Um a um, todos em fila...
Para vós, carrascos,
o perdão não tem nome.
A justiça vai soar,
E o sangue das vidas caídas
nos matos da morte
ensopando a terra
num silêncio de arrepios
vai fecundar a terra,
clamando justiça.
É a chamada da humanidade
cantando a esperança
num mundo sem peias
onde a liberdade
é a pátria dos homens...

(É nosso o solo sagrado da terra)

Para lá da praia
Baía morena da nossa terra
vem beijar os pezinhos agrestes
das nossas praias sedentas,
e canta, baía minha
os ventres inchados
da minha infância,
sonhos meus, ardentes
da minha gente pequena
lançada na areia
da praia morena
gemendo na areia
da Praia Gamboa.

Canta, criança minha
teu sonho gritante
na areia distante
da praia morena.

Teu teto de andala1
à berma da praia
teu ninho deserto
em dias de feira,
mamã tua, menino
na luta da vida.

Gamã pixi2 à cabeça
na faina do dia
maninho pequeno, no dorso ambulante
e tu, sonho meu, na areia morena
camisa rasgada,
no lote da vida,
na longa espera, duma perna inchada

Mamã caminhando p'ra venda do peixe
e tu, na canoa das águas marinhas
- Ai peixe à tardinha
na minha baía
mamã minha serena
na venda do peixe
pela luta da fome
da gente pequena.

(É nosso o solo sagrado da terra)

1 - Andala: folha de palmeira;

2 - Gamã pixi: gamela com peixe.

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