segunda-feira, 17 de março de 2014

Amílcar Cabral. "O meu irmão conseguia fazer amizades em todo lado"


Amílcar Cabral estuda em Lisboa e pensa no regresso a África. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

Carlos Pinto Santos
http://www.vidaslusofonas.pt/amilcar_cabral.htm

Em Cabo Verde as autoridades proíbem o programa de rádio de Amílcar Cabral. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
Amílcar propõe a reafricanização dos espíritos. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.      
 Amílcar Cabral chega a Portugal em 1945. É o ano da grande esperança para os democratas portugueses, depressa desfeita quando Salazar garante a condescendência dos vencedores da Segunda Guerra Mundial e mantém, inalterável e apoiado, o regime de ditadura.
A primeira mulher de Amílcar, Maria Helena de Athayde Vilhena Rodrigues, foi sua colega no Instituto de Agronomia. Narrou assim a Mário de Andrade o conhecimento do futuro marido, de quem viria a ter duas filhas, Iva Maria e Ana Luísa:
"Conheci Amílcar no primeiro ano de Agronomia, em 1945. As aulas tinham começado em Novembro, ele chegou em Dezembro (...) Eu não pertencia ao seu grupo, mas lembro-me perfeitamente de o ver entre os outros colegas. Como ele era o único negro, notava-se bem... Amílcar não fizera o exame de admissão à Universidade (...) toda a gente falava dele, elogiava a sua inteligência e ele, para mais, era simpático e descontraído. No que respeita às suas actividades políticas, lembro-me que os meus camaradas recolhiam assinaturas de adesão aos movimentos democráticos. E Amílcar participava activamente nesses comités de estudantes antifascistas. Aquando das assembleias era ele quem dirigia as discussões porque se exprimia muito bem (...) No princípio do terceiro ano, em Outubro de 1948, pertencemos à mesma turma, a dos únicos vinte e cinco estudantes que tinham passado nos exames".
Condiscípulos e amigos recordam Amílcar como um indivíduo de dinamismo contagiante, grande sentido de humor, com enorme capacidade de criar amizades. Sedutor, atrai afectos femininos com facilidade.
"Era o mais bem vestido e aprumado de todos nós", lembra seu amigo, o jornalista Carlos Veiga Pereira.
"O meu irmão conseguia fazer amizades em todo lado", diz Luís Cabral. "Foi pela simpatia de Amílcar — revelou em entrevista ao "Diário Popular" o primeiro presidente da República da Guiné-Bissau — que os soviéticos nos forneceram os mísseis com que controlámos a aviação portuguesa. O magnata italiano Perelli era seu amigo e deu-nos as fardas de oficiais que usávamos. Tudo por amizade e simpatia".
O estudo, a militância, os namoros, ainda lhe deixam tempo para se dedicar ao seu desporto preferido: o futebol.
E, segundo as crónicas, caso o tivesse querido poderia ter feito carreira. De tal maneira dá nas vistas na equipa de Agronomia que o Benfica chega a convidá-lo para ingressar no clube. Mas Amílcar declina a proposta e mantém-se apenas nos "pelados" universitários.
Durante os anos de estudo um irresistível apelo o toma, bem como a outros estudantes negros: era necessário o regresso a África. Não só pela família que ama profundamente, mas porque "milhões de indivíduos têm necessidade da minha contribuição na luta difícil que travam contra a natureza e os próprios homens (...) Lá, em África, apesar das cidades modernas e belas da costa, há ainda milhares de seres humanos que vivem nas mais profundas trevas". Em 1949, escreverá: "Vivo intensamente a vida e dela extraí experiências que me deram uma direcção, uma via que devo seguir, sejam quais forem as perdas pessoais que isso me ocasione. Eis a razão de ser da minha vida".
Esta vida a que se refere, partilha-a, em Lisboa, no Instituto de Agronomia, na Casa dos Estudantes do Império e nos livros que lhe abrem os horizontes de compreensão do mundo do seu tempo. Entre esses livros um será determinante: a Anthologie de la nouvelle poésie négre et malgache, organizada por Léopold Sédar Senghor. Este livro traz-lhe a certeza que "o negro está a despertar em todo o mundo". Teoriza sobre o cabo-verdiano — o homem resultante da fusão dos primeiros habitantes do arquipélago, brancos e negros. Já então reconhece que o número de mestiços é seis vezes superior ao dos brancos e três vezes ao dos negros — do ponto de vista psíquico há um "espírito cabo-verdiano", existe a cabo-verdianidade. Esta profissão de fé tem de ser harmonizada com a militância. No quinto ano do curso, Amílcar volta ao arquipélago para passar as férias grandes. A sua especialidade técnica - a erosão dos solos - e a cultura geral de que dispõe, quer transmiti-las e ensiná-las aos cabo-verdianos. Na Praia, pronuncia, através do Rádio Clube de Cabo Verde, várias palestras sobre as características do solo das ilhas. Apesar das dificuldades, reconhece que a agricultura é a base da economia de Cabo Verde. Para tal, é necessário elucidar, esclarecer, consciencializar o homem da rua. Amílcar coloca o problema da elite na sociedade. É preciso criar uma vanguarda intelectual que leve ao cabo-verdiano anónimo toda a informação sobre os seus problemas tradicionais. Como dirá: "Os quadros devem esclarecer aqueles que vivem na ignorância".
Esta informação deve ultrapassar os limites de Cabo Verde e tornar-se uma informação global que se alargue a todo o mundo. Eis a sua tarefa de militante: consciencializar os cabo-verdianos.
Mas as autoridades portuguesas rapidamente lhe proíbem o acesso à rádio. Como lhe proíbem que ministre um curso nocturno na Escola Central da Praia.
"Dar a conhecer Cabo Verde aos cabo-verdianos" corresponde ao que acontece em Angola: "Partamos à descoberta de Angola" é a divisa de um grupo de jovens intelectuais em torno do poeta Viriato da Cruz.
De novo em Lisboa, Amílcar firma os laços que o unem a outros estudantes originários das colónias portuguesas. Trata-se de um grupo de jovens, provenientes da pequena burguesia urbana africana, todos conscientes da revolta contra o colonialismo e detentores da vantagem de possuírem instrução e cultura. Militam nas organizações da juventude democrática portuguesa, o MUD Juvenil, o Movimento para a Paz. Com uma bandeira que os diversifica dos europeus: a reafricanização dos espíritos, diz Amílcar Cabral. Esta reprocura da identidade leva à criação, em casa da família Espírito Santo (de que é figura proeminente a santomense Alda Espírito Santo), de um Centro de Estudos Africanos. Ali se discutem, apesar das incursões da PIDE, algumas das questões mais prementes da África sob a domínio português. Amílcar tem nesses debates uma participação decisiva.

         O PAIGC E O INÍCIO DA LUTA ARMADA
Amílcar Cabral vai para Bissau como engenheiro agrónomo. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
Amílcar Cabral funda o PAIGC e inicia a luta armada contra o Estado Português. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.    
Após terminar o curso, em 1950, faz estágio na Estação Agronómica de Santarém. Pouco depois, falece Juvenal Cabral. Em 1952, Amílcar regressa a África, a Bissau, contratado pelos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné Portuguesa.
Aos 28 anos desembarca em Bissau um engenheiro agrónomo que tem em mira outros fins que não só os da sua profissão (onde, aliás, será sempre de grande competência). O principal desses fins: consciencializar as massas populares guineenses. Como escreverá na comunicação aos quadros, em plena luta de libertação, em 1969: "Não foi por acaso que viemos para a Guiné. Nenhuma necessidade material determinava o nosso regresso ao país natal. Tudo foi calculado, passo a passo. Tínhamos enormes possibilidades de trabalhar nas outras colónias portuguesas e mesmo em Portugal. Abandonámos um bom lugar de investigador na Estação Agronómica para virmos para um lugar de engenheiro de segunda classe na Guiné (...) Isto obedeceu a um cálculo, a um objectivo, à ideia de fazer qualquer coisa, de contribuir para o levantamento do povo, para lutar contra os portugueses. É isso que temos feito desde o primeiro dia em que chegámos à Guiné".
O "Engenheiro", como lhe chamarão os compatriotas, está na melhor das posições para levar a cabo a tarefa de consciencialização. No posto agrícola de Pessubé, que dirige, contacta com os trabalhadores rurais entre os quais cabo-verdianos. É difícil a unidade entre estes e os guineenses para a constituição de uma luta comum. Será difícil até ao fim, apesar de alguns cabo-verdianos (Aristides Pereira, Fernando Fortes, Abílio Duarte, entre outros) se unirem à sua volta. O trabalho político segue a par da actividade profissional. Encarregado da planificação e execução do recenseamento agrícola da Guiné, o relatório que elabora continua a ser hoje o primeiro dado valorizável para o conhecimento da agricultura guineense.
A princípio, Amílcar Cabral procura agir na legalidade. Redige os estatutos de um Clube desportivo e cultural ao qual podem aderir todos os guineenses. As autoridades portuguesas não o autorizarão a funcionar porque a maioria dos signatários não possui bilhete de identidade.
Em 1955, o governador Melo e Alvim obriga Cabral a deixar a Guiné, embora lhe permita voltar uma vez por ano, por razões familiares.
1955 é o ano da Conferência de Bandung que assinala o nascimento do Movimento dos Não-Alinhados, do final da primeira guerra de independência do Vietname, da passagem à luta armada da FNL argelina. E Amílcar Cabral transferido para Angola, trabalha em Cassequel, como engenheiro... e tomando contacto activo com os fundadores do MPLA, ao qual se liga, desde início.
Numa das suas passagens por Bissau, a 19 de Setembro de 1959, Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Luís Cabral, Júlio de Almeida, Fernando Fortes e Elisée Turpin criam o Partido Africano da Independência/União dos Povos da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Obviamente, um partido clandestino, que só deixará de o ser quatro anos mais tarde, quando instalar a sua delegação exterior em Conacri.
Nesse período, a actividade de Amílcar Cabral é esgotante. Continuando os seus estudos fitossanitários e agrológicos, viaja frequentemente entre Portugal, Angola e Guiné.
Em Novembro de 1957 participa em Paris numa reunião para o desenvolvimento da luta contra o colonialismo português, mantém contactos com os anti-colonialistas em Lisboa, está em Accra num encontro pan-africano e vai a caminho de Luanda quando ocorre o massacre de Pidjiguiti. Em Janeiro de 1960 vai à II Conferência dos povos africanos, em Tunis, em Maio está em Conacri. Ainda neste ano, em Londres, denuncia numa conferência internacional, pela primeira vez, o colonialismo português. Mas aí, como durante todos os anos de luta, sublinha com ênfase não estar contra o povo português. O seu combate é, em exclusivo, contra o sistema colonial.
Hoje, as investigações históricas e os depoimentos de muitos intervenientes da época mostram que líder do PAIGC sempre se disponibilizou para negociações com o Governo português, nunca aceites pelo regime da ditadura.
Entre 1960 e 1962, o PAIGC actua a partir da República da Guiné. Essa actuação desenvolve-se em três aspectos: formar militantes e quadros para a difusão do Partido no interior da Guiné, garantir o apoio dos países limítrofes (o que foi tarefa complicada porque a República da Guiné pretendia a utilização dos guineenses de Amílcar Cabral na sua própria política e porque o Senegal se manifestou hostil durante seis anos) e, finalmente, a obtenção do apoio internacional.
É a República Popular da China quem dá o primeiro passo, recebendo, em 1960, Amílcar Cabral e alguns quadros que ali ficarão preparando a guerrilha e a formação ideológica. Em 1961 o Reino de Marrocos concede-lhe idêntico apoio.
Em 1962, desencadeia-se a luta armada contra o Estado Português. Tinham passado 17 anos desde que o filho de Juvenal Cabral chegara a Lisboa para frequentar a Universidade.

         UMA TEIA DE INTERESSES
 Séku Turé instiga ao assassínio de Amílcar. E, entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.  
Em reportagem publicada no Expresso, a 16 de Janeiro de 1993, José Pedro Castanheira fornece uma série de dados sobre a morte de Amílcar Cabral, que, três anos depois aprofunda no livro "Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?".
É possível crer em vários factos. A política colonial portuguesa, dividindo para reinar, criara uma diferenciação entre cabo-verdianos e guineenses. Os primeiros, mestiços na sua grande maioria e mais escolarizados, são os preferidos da administração do Estado Novo. Desempenham os cargos menos desqualificados, usufruem de um tratamento preferencial. Quando se constitui o PAIGC, os quadros dirigentes são cabo-verdianos, os combatentes são guineenses. O próprio Amílcar Cabral, embora nascido na Guiné, é considerado cabo-verdiano. As tensões, os conflitos no interior do PAIGC existiram sempre. Em 1973, a guerra de libertação nacional encaminha-se para a vitória. Os dirigentes políticos continuam a ser cabo-verdianos. É provável que a proximidade do êxito extremasse a confrontação no Partido.
Séku Turé que, desde 1958, fora um líder africano de grande prestígio está em perda de influência. Por seu turno, Amílcar Cabral é uma personalidade que se evidencia na cena africana e internacional, reunindo apoios que vão da China e dos regimes comunistas, aos países nórdicos. O grande sonho de Turé de anexar a Guiné-Bissau para criar a "Grande Guiné" está em perigo. É bem provável que tivesses dado sinais de concordância aos revoltosos - todos guineenses - para consumarem o crime. Cabral sairia de cena, o PAIGC desmembrar-se-ia, passando, na prática, para o controlo de Turé. (Em Maio de 1974, Leopold Senghor, Presidente do Senegal, não hesita em afirmar ao coronel Carlos Fabião e ao embaixador Nunes Barata ter sido Séku Turé o instigador do assassínio de Amílcar Cabral).
Por fim, a PIDE/DGS. Desde muito, pelo menos desde 1967, a organização policial portuguesa procurava matar Cabral. Alguns guerrilheiros prisioneiros foram manobrados para colaborarem com a polícia política. Ficou provado em relação a alguns dos intervenientes no atentado. Tudo leva a crer que, em medida desconhecida, a PIDE não foi alheia a toda a trama.
Testemunhos da época revelam também que Amílcar Cabral tinha consciência que poderia ser traído pelos companheiros de luta. Afirmara algumas vezes: "se alguém me há-de fazer mal, é quem está aqui entre nós. Ninguém mais pode estragar o PAIGC. Só nós próprios".

         AS VÁRIAS MORTES DE AMÍLCAR CABRAL
Amílcar Cabral foi sepultado no cemitério de Conacri. Desaparece de cena o mais esclarecido dirigente africano da sua geração, o principal teórico da luta armada africana de libertação.
O homem que sempre viveu em coerência com os seus ideais, o líder do movimento guerrilheiro que almejava uma comunidade fraterna que floresceria — em várias ocasiões o escreveu e disse — quando os dois povos levados à guerra se libertassem do opressor comum, seria morto mais vezes.
Vítima de um ajuste de contas que não merecia, Amílcar Cabral teve a segunda morte no golpe de Estado de Nino Vieira de 14 de Novembro de 1980 que arrasou o seu grande sonho de fazer da Guiné e de Cabo Verde um único país, ou, pelo menos, uma união de Estados capaz de se impor aos desígnios hegemónicos dos governos de Dacar e Conacri, e desmembrou o PAIGC por ele fundado.
Morreu com a ostentação, a corrupção e a sanha sanguinária na resolução dos diferendos políticos onde se deixaram atolar muitos dos dirigentes guineenses.
Morreu com a miséria, a doença e a fome que dizima o seu povo vinte anos depois da independência admiravelmente conquistada nas matas de Madina do Boé.
Morreu agora outra vez quando velhos camaradas de armas — os seus antigos camaradas — se digladiaram numa luta fratricida infligindo à Guiné-Bissau uma destruição terrivelmente superior à provocada por onze anos de guerra colonial vendendo, provavelmente, a soberania nacional numa patética tentativa de conservar a bebedeira do poder.
 
ILHA
- um poema de Amílcar Cabral - Praia, Cabo Verde, 1945 -
                Tu vives — mãe adormecida —  
                nua e esquecida,
                seca,
                fustigada pelos ventos,
                ao som de músicas sem música
                das águas que nos prendem…  
 
                Ilha:  
                teus montes e teus vales  
                não sentiram passar os tempos  
                e ficaram no mundo dos teus sonhos  
                    os sonhos dos teus filhos     
                a clamar aos ventos que passam,  
                e às aves que voam, livres,  
                as tuas ânsias!  
 
                 Ilha:  
                colina sem fim de terra vermelha  
                    terra dura     
                rochas escarpadas tapando os horizontes,  
                mas aos quatro ventos prendendo as nossas ânsias!

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