Ele já teve endereço no Rio, e hoje mora em Lisboa, mas às vezes vive em Luanda. Ele, nas próprias palavras, é morador do mundo. De 28 a 30 de maio, o escritor angolano José Eduardo Agualusa, 50, morou em São Francisco Xavier, o pequeno distrito de São José dos Campos (SP) que serve de sede, há três anos, ao Festival da Mantiqueira – Diálogos com a Literatura. Caminhou, conversou com leitores e com outros autores, provou menus locais. E participou, juntamente com dois escritores brasileiros, de um debate em que falou de política, geografia sentimental e, claro, literatura. Depois, num banco da praça central do distrito, entre uma abordagem e outra de fãs, ele falou a VEJA Meus Livros.
Posso estar errada, mas eu tenho a sensação de que os festivais celebrizam os escritores. É possível?
O que esses encontros têm de melhor para o autor é o contacto com o público. Para mim, é importante, primeiro, porque temos uma noção real de para quem estamos escrevendo, o que interessa nos nossos livros às pessoas. Se não tivermos esse contacto, é um pouco como atirar garrafas ao mar, sem saber se alguém as abrirá, se alguém vai ler aquilo, não tendo nenhum eco. Segundo, porque as pessoas fazem sugestões, fazem críticas.
Então, há mais que tietagem nos festivais?
Há de tudo, evidentemente. Mas você tem leitores muito críticos, que apontam erros. Não há livro que não tenha erros, até de lógica interna, de estrutura. E há pessoas que conhecem os livros todos do autor e podem falar deles. Tem gente que conhece os meus livros melhor do que eu. Eu já não lembro dos meus. O primeiro eu nunca mais li, por exemplo.
Que crítica incomoda mais a você, a do leitor ou a do resenhista?
Nenhuma crítica incomoda, se é justa. Quando aponta um erro, ótimo, porque a gente corrige. Essa crítica é muito importante porque ajuda o escritor a fazer melhor. Às vezes, há erros indicados em um determinado livro que podem ser corrigidos em edições seguintes. Essa crítica é sempre bem-vinda. O que irrita o autor é a crítica que não é justa ou que é feita a partir de uma leitura equivocada ou, indo ainda mais longe, de uma não-leitura. E tanto faz se essa crítica deprecia ou elogia o livro. De nada serve aquela crítica que faz um monte de elogios ao seu livro, mas que é superficial. Essa crítica também me irrita. Me irrita tanto quanto a crítica que desanca, que destrói o livro sem um esforço de compreensão, sem tentar ajudar o leitor. Eu fui crítico durante muito tempo, e acho que o papel principal da crítica é ajudar o leitor a ler o livro.
Um resenhista brasileiro criticou a presença do realismo mágico no seu último livro,Barroco Tropical, lançado aqui no Brasil pela Companhia das Letras. Este seria um caso de crítica justa ou injusta?
Este é um bom exemplo de crítica que não é justa. Até porque, ali em Angola, se a gente tenta construir um romance realista, acaba sempre construindo um romance que fora é tido como realismo mágico, porque a própria realidade está completamente mergulhada no maravilhoso e no fantástico. As pessoas trouxeram do exterior, do campo para a cidade, esse mundo mágico onde elas vivem. Haveria que se discutir essa presença do realismo mágico. E, de resto, por que não? Por que não se pode ter realismo mágico em um livro? O que há de errado nisso?
Barroco Tropical foi lançado no Brasil no final do ano passado. Já podemos esperar um novo romance seu?
Eu acabei de terminar um romance que, no fundo, é uma história sobre a língua portuguesa. Em Portugal, sairá em outubro. Espero que aqui saia até o fim do ano pela Companhia das Letras. O livro se chama Milagrário Pessoal, porque o personagem principal, o narrador, é um linguista angolano que tem um caderninho que ele chama de milagrário pessoal, no qual ele anota todos os pequenos prodígios do cotidiano. Ele acha que os grandes milagres são discretos, mas acontecem, estão sempre acontecendo. Então, ele tem esse caderninho, e a primeira parte do romance é como se fossem anotações dele no caderninho. Ele vai contando a história nesse milagrário. Posso contar a história, se você quiser.
Quero, claro.
É a história de uma menina, uma linguista, que trabalha com neologismos. Ela usa um programa de informática para recolher as palavras novas que chegam à língua todos os dias e depois as analisa para saber se são neologismos. Para você ter uma ideia, todos os anos cerca de 300 palavras novas chegam aos dicionários. Então, o trabalho dela é de recolher as palavras novas e dicionarizar aquelas que são efetivamente neologismos. De uma forma geral, os neologismos são pouco interessantes. São anglicismos, palavras que vêm do inglês, sem grande interesse. Mas um dia, misteriosamente, ela começa a receber dezenas, depois centenas de palavras, mas palavras tão bonitas, tão extraordinárias, tão urgentes e tão necessárias que as pessoas se apropriam delas e começam a utilizá-las sem sequer darem conta que são palavras novas. E ela fica tão perturbada com a situação que vai falar com o antigo professor, esse velho linguista angolano, o narrador, que é um homem pouco ortodoxo, e ela acha que ele pode ajudá-la a resolver aquele mistério. E os dois juntos vão tentar encontrar a fonte desses neologismos. No fim, é uma grande viagem pela língua portuguesa, pela história da língua e pela forma como a língua se foi afeiçoando a territórios tão diversos geograficamente.
Há outro projeto, além desse?
Sim. O outro projeto, que provavelmente só para o ano estará concluído, é um livro de contos sobre canções da MPB. Tem o título provisório de Contos Cantados, mas não ficará assim. Um dos contos já saiu aqui numa recolha de contos baseados em composições do Caymmi, o meu é sobre É Doce Morrer no Mar. É uma música muito bonita, até hoje eu gosto muito. Tem uma versão angolana do Paulo Flores, que ficou bem. Escrevi também um conto, que foi publicado num jornal português, a partir de João e Maria, do Chico Buarque, que deve entrar no livro. Tem também um texto baseado em A Força que Nunca Seca, da Vanessa (ele diz Vanéssa) da Mata. Serão uns dez contos.
De que maneira a música reverbera no seu texto?
Eu tenho uma preocupação grande com o ritmo e a melodia interna da frase. Tanto que o livro As Mulheres do Meu Pai teve o primeiro parágrafo, que é escrito em prosa, musicado por um cantor português, João Gil. Num primeiro momento, quando ele me contou que havia musicado o texto, eu tomei um susto. Achei que não tinha resultado bem, mas acabei gostando. E fiquei feliz porque mostra que aquilo que escrevo tem alguma melodia, tem algum ritmo. Sempre digo aos tradutores: a única preocupação que eu tenho é de que as frases mantenham o ritmo.
Você lê seus textos em voz alta?
Leio. Acho muito importante. Muito, muito, muito. Ler em voz alta é essencial para conhecer o resultado do texto, para saber se tem ritmo. Há uma coisa que se faz com frequência na Europa, em países como França, Alemanha e Inglaterra, e que aqui pouco se faz, que é a leitura enquanto espetáculo. Sessões de leitura em que o autor lê um trecho pequeno do livro, na sua língua original, depois tem um ator que lê mais páginas. E depois há a possibilidade de conversar com o público. Isto é visto como um espetáculo, as pessoas pagam para assistir. Eu fiquei a gostar muito desse modelo.
Essas sessões também devem servir de fonte de renda para os escritores.
Sem dúvida nenhuma. É significativo.
As pessoas costumam idealizar os escritores e esperar deles considerações profundas sobre o cosmos. Alguém já lhe perguntou, por exemplo, qual o sentido da vida?
Muito (risos). Acho que o importante, quando você não sabe o que responder, é contar uma história. Se a história for boa, a pessoa se distrai, e no final já nem lembra o que perguntou. Eu conto sempre uma história passada em Berlim, quando eu vivia por lá. Fui a um encontro com três poetas sul-africanos. Era uma sala escura, os poetas estavam sentados cada qual à sua mesa, com um foco de luz em cima. Tinha uma apresentadora alemã, falando em alemão, num tom monocórdio, muito chata. Ao fim de pouco tempo, estava todo mundo numa sonolência grande, quando me dei conta de que um dos poetas adormecera na mesa. E a partir desse instante a ação ficou muito interessante, porque todo mundo queria saber como é que ela ia resolver aquele problema. Então, ela terminou a apresentação e fez uma primeira pergunta em inglês para o poeta adormecido. E o poeta dormindo. Ela repete a pergunta mais alto. E o poeta dormindo. Então, ela aproxima-se finalmente do poeta, gritando a pergunta em inglês, o poeta acorda estremunhado e diz, Essa pergunta eu não respondo.
Que ótimo. Eu já esqueci a pergunta (risos).
(Risos.) Você quer saber a pergunta mais absurda que um jornalista me fez aqui no Brasil?
Quero.
Como está a situação da escravatura em Angola?
E o que você disse?
Eu disse, Olha, eu acho bom que você tenha colocado essa questão, porque é uma questão tão atual, e é um escândalo que continuem chegando ao Brasil navios carregados de escravos, e a Armada Britânica não consegue fazer nada. A menina ficou chocada e disse, É verdade isso, é verdade?? (Risos.)
Maria Carolina Maia
http://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/tag/jose-eduardo-agualusa/
Sem comentários:
Enviar um comentário