segunda-feira, 20 de abril de 2009

Marina Tsvetáieva. Estenógrafa do ser


Os textos autobiográficos de Marina Tsvetáieva equivalem a ciclos sucessivos no purgatório e no inferno: a única interrupção possível é a morte, geralmente dolorosa e trágica. No caso da poeta russa, nascida em 1892, o fim foi o suicídio aos 49 anos incompletos, depois de uma seqüência de exílio, de fome, de perdas familiares, de frio e de penúria provocada tanto pelas frustrações amorosas quanto pela política. Impressiona que no longo sofrimento da poeta, considerada por Vladimir Maiacóvski "demasiado feminina", tenha podido surgir uma obra tão extraordinária, marcante por versos elípticos e metáforas surpreendentes, mesmo em tradução: "Sequer quero o buraco / Da orelha, e o olhar confuso. / Ao Teu mundo insensato / Só digo que – recuso".

Nas confissões reunidas em Vivendo sob o fogo (Martins, 763 páginas, R$ 83), com base em cartas e páginas de diário selecionadas pelo crítico Tzvetan Todorov, fica-se diante de um moderno Livro de Jó no qual a redenção parece menos importante do que a presença do mal e a força da esperança. Deve-se à tradutora Aurora Fornoni Bernardini, que já preparara uma antologia bilíngue de poemas em Indícios flutuantes (2006), o aparecimento em português dessa obra em prosa. Praticamente não há uma só página feliz ao longo da autobiografia montada a partir da seleção de dezenas de volumes. Em vários momentos, Marina Tsvetáieva é lírica e lancinante ao falar do seu sofrimento e das suas paixões, que a levam a extremos: "De um modo geral, detesto os literatos; para mim, cada poeta – vivo ou morto – é um protagonista de minha vida. Não vejo nenhuma diferença entre um livro e um ser humano, um pôr-do-sol e um quadro. – Tudo o que eu amo, amo com o mesmo amor". Nem toda confissão, no entanto, pode ser considerada criação literária – é o caso da carta que a poeta escreve para o poderosíssimo Lavrenti Béria, chefe do Comissariado do Povo para Assuntos Internos (NKDV), o serviço secreto e de segurança responsável, entre várias atividades, pela repressão política, pelas execuções extrajudiciais e pelo sistema de trabalho forçado nos gulags.

A poeta faz um apelo pela vida do marido, Sergei Efron, e pela filha do casal, Ariadna, ambos detidos em outubro e agosto de 1939, respectivamente. Inicialmente alistado no Exército Branco (ou seja, em oposição aos bolcheviques e aos ideais da Revolução de 1917), o militar foi em seguida cooptado pela espionagem comunista e esteve envolvido no assassinato de um agente soviético na Suíça. Em tom comovido e patético, a poeta procura explicar àquela máxima autoridade, que punia os "inimigos do povo", o drama de consciência de toda a sua família, em dimensão de tragédia: porém, cometido o "erro fatal" de haver participado do movimento meio monarquista e meio democrata contrário ao Exército Vermelho, como justificar a inocência de seu marido? O sistema repressivo já havia reduzido Sergei Efron a um homem sem ideais, atormentado por sua ambigüidade e fraqueza moral. Ele será fuzilado em 1941, pouco depois do suicídio de Marina Tvestáeva. A filha, também acusada de espionagem e "atividades anti-soviéticas", foi processada em 1939 e padeceu oito anos de "reeducação pelo trabalho".

A morte da mãe da poeta, tuberculosa, aos 37 anos, e a morte de uma filha mais nova, Irina, em 1920 – por maus tratos infligidos num abrigo para crianças – foram marcos do destino mórbido da poeta. Porém, outra seqüência de episódios de muita intensidade já havia também começado: a dos casos extramaritais de Marina Tsvetáieva com vários homens, a exemplo de Ossip Mandelstam, e também com a poeta Sofia Parnok, que tiveram impacto sobre sua obra. Muitos ciclos sentimentais, nunca paradisíacos, começaram e terminaram, sempre tocados pelo suplício. A atração que a autora de Psiquê (1923) sente por tantas pessoas – nem todas chegam de fato a ser suas amantes – forma o núcleo poético das suas confissões: é nessa dimensão amorosa que ela mais exibe o seu talento. Numa carta para o escritor Aleksandr Bakhrakh, na qual este toma conhecimento de ser ex-amante da poeta, ela conta que está amando outro (no caso, Konstantin Rodzevich, oficial do Exército Vermelho!), e conclui: "Terei deixado de amar você? Não. Você não mudou e eu não mudei. Só mudou uma coisa: minha fixação dolorosa em você. (...) Minha hora com você terminou, resta minha eternidade com você. Oh, demore-se um pouco nela!"

São as atrações passionais (ou "idílios cerebrais", como prefere) que elevam as anotações autobiográficas de Marina Tsvetáieva a um patamar só alcançado por seus poemas. Vivendo sob o fogo procura demonstrar, justamente, a superioridade da prosa da escritora russa, idéia que contraria a opinião de especialistas como Charles Simic e Jamey Gambrell, ainda que reconheçam a dificuldade e densidade lingüística dos poemas. Na confissão amorosa, ela se transformava na "estenógrafa da vida", sempre atenta para os acontecimentos mais presentes e mais tumultuados, fosse a sua pobreza material ou uma carta recebida há pouco. Deve-se recordar que, embora escritas em diversas formas, essas confissões tiveram início por uma razão de identidade literária: os diários da russa Maria Bashkirtseff (1858-1884), que morreu enferma aos 25 anos. E, no seu febril esforço de transmitir os eventos íntimos que lhe transtornavam, Marina Tsvetáieva procurava nos outros a melhor inspiração para obra confundida com a vida: por isso, numa anotação de 1919, declara que "o poema é o ser: de outra forma é impossível".

Tão precoce e constante como a idéia do suicídio é a presença da política na obra de Marina Tsvetáieva. A Revolução de Outubro foi seguramente o evento mais catastrófico para a poeta, e gerou uma situação impossível para sua família. Tanto os revolucionários quanto o regime que se consolidou exigiram dela uma definição que a poeta nunca esteve em condições de alcançar: seus temas eram a plenitude e a totalidade. Mesmo o fato de ser russa, segundo sua concepção, importava pouco: ser poeta, para ela, apagava as marcas da nacionalidade e a transformava num ser absoluto. Mas a Revolução varreu tudo: seu casamento e mesmo o destino das filhas. Numa carta de 1921 ao marido, ao comentar a morte de Irina, avalia que a filha "era uma criança muito estranha e, quem sabe, incurável". Mas admite em seguida: "Claro, se não houvesse a Revolução". Entre pão e céu – e também entre a falta e pão e o céu inalcançável – se posicionou Marina Tsvetáieva, cuja obra segue suspensa no lugar que só ela ocupa.
http://jbonline.terra.com.br/editorias/textosdoimpresso/jornal/ideias/2008/09/27/ideias20080927007.html

Sem comentários:

Enviar um comentário