segunda-feira, 6 de abril de 2009

A paixão em Marina Tsvetáieva


Tradutora da antologia ‘Vivendo sob o fogo’ comenta vida e obra da poeta russsa

Douglas Diegues Escritor


A versão brasileira de Vivendo sob o fogo, de Marina Tsvetáieva, merece ser celebrada como um dos acontecimentos mais significativos dentro do âmbito editorial brasileiro. Organizado e publicado originalmente na França por Tzvetan Todorov, a obra reúne cartas, poemas e fragmentos de diários da poeta russa, considerada por Todorov uma das maiores escritoras do século 20, e admirada por gente como Rainer Maria Rilke, que lhe dedicou a última das Elegias de Duíno. O livro – tema da coluna do poeta e diplomata Felipe Fortuna à página 7 deste Idéias – foi traduzido por Aurora Bernardini, que, além de talentosa e competente, convive com a magnífica obra de Tsvetáieva há mais de duas décadas. Nesta entrevista, Aurora Bernardini fala sobre a poeta que traduziu para um português, digamos, mais selvagem que bem escrito, um português-brasileiro em chamas.

Quais as diferenças da sua tradução em relação à edição francesa?

A primeira diferença é o título: Vivre dans le feu era o que Todorov escolheu, mas em português não dá. Pensamos junto com a equipe da editora Martins em algo como Uma vida em chamas, mas mudamos para o título atual por estar mais próximo à idéia de Tsvetáieva. Viver no fogo é uma alusão à salamandra e à fênix, dois seres mitológicos de que ela gostava muito, por resistirem ao irresistível e limitarem com o absoluto. A nossa tradução possui versões diferentes dos poemas russos que constam do livro em francês e notas explicativas.

Nas primeiras linhas da introdução, Tzvetan Todorov afirma que Tsvetáieva "é uma das maiores escritoras do século 20" e que "seu destino é um dos mais trágicos"...

Quanto ao destino trágico: voltar para a URSS em plena fase stalinista às vésperas do início da 2ª Guerra e se ver refugiada às vésperas da operação Barbarossa (invasão da URSS pelos alemães) num vilarejo perdido da República Tártara junto com o filho, último sobrevivente da família aos expurgos (já haviam sido presos a filha Ália e o marido Seguei). Dificilmente haveria pior época. No entanto, no meio de tantas adversidades (mesmo na França, ela foi tratada como a ovelha negra da emigração russa, excluída de todas as revistas a partir do momento em que saudou Maiakóvski), Tsvetáieva continuou compondo seus versos. Quando não pôde mais escrever, suicidou-se.

Fale da poesia de Marina Tsvetáieva. Quais são as características próprias de sua linguagem?

O que impacta nela são a extrema concisão e a escavação à qual submete as palavras. As rimas são altamente inovadoras e a pontaria é certeira. Por isso o efeito é de grande autenticidade.

Como foi a relação dela com os poetas de seu tempo e as vanguardas da época, como o cubo-futurismo?

Os bons poetas, ela apreciou-os todos. Não discriminava sexo ou tendência: Maiakóvski, Biéli, Balmont, Pasternak, Mandelstam, Anna Akhmátova, Kuzmin. Mas era terrível com quem não gostava. Não gostava de Briússov, e num ensaio explica o porquê com uma contundência de dar inveja ao melhor crítico literário. Na França, onde viveu 14 anos, além dos clássicos, apreciava André Gide, para quem escreveu uma longa carta-aula sobre tradução criativa (que consta do livro), Anna de Noailles, para quem também escreveu, e Natalie Clifford Barney, uma famosa homossexual que mantinha um famoso salão em Paris. Para ela, escreveu "Carta à amazona", onde se revela desprovida de qualquer preconceito de ordem sexual. Quanto às vanguardas, sua poesia tinha muitos elementos germinais do cubo-futurismo russo, o uso das raízes das palavras, por exemplo, mas, na França, quando alguma revista recusava seus poemas por não serem "nem sequer surrealistas", comentava, avec panache: "Ainda bem"! De uma maneira geral ela se manteve afastada dos preceitos de qualquer escola.

O que os contemporânes de Tsvetáieva, como Maiakovski e Pasternak, diziam da poesia dela?

Pasternak considerava-a uma mestra do simbolismo russo, uma vez que "tinha realizado com a maior naturalidade aquilo que os simbolistas haviam procurado em vão". Mas ela superou o simbolismo. Já Maiakóvski achava-a por demais feminina, e Górki por demais sensualista.

Existem semelhanças e diferenças entre a poesia de Marina Tsvetáieva e a dos grandes poetas de sua época?

Tsvetáieva era uma poeta tão consumada que sabia assimilar o estilo dos poetas que admirava. No ciclo dedicado à Akmátova, escreveu como a acmeísta; nos dedicados a Blok, como o simbolista, e assim por diante: Pasternak, Maiakóvski, o próprio Púchkin... Mas ela destaca-se por suas características próprias.

Tsvetáieva se relacionou também com magnificos poetas não-russos de sua época, como Rilke...

Ela tinha uma excelente formação em literatura alemã (a mãe era uma refinada musicista de ascendência germânica) e vivera sua primeira mocidade inebriada por Goethe, a quem considerava o mestre dos mestres. Isso sem contar sua paixão por Napoleão e pelos românticos franceses: Rostand, Rolland. Quando conheceu Rilke, por intermédio de Pasternak, passou a corresponder-se com ele em alemão e o fez tão magistralmente que encantou o poeta, a ponto de este dedicar-lhe sua última elegia.


Em algumas páginas de Vivendo sob o fogo, Tsvetáieva expressa incalculável paixão pelo poeta Boris Pasternak.... Como foi essa relação?

A questão da paixão, ou melhor, das paixões, é uma constante na vida e na obra da poeta. Ela escrevia em estado de paixão. No caso de Pasternak, durante um período, a atração, despertada pela poesia, se transformou em recíproco apaixonamento, não favorecido pelas circunstâncias. Ela era muito sedutora e chegava a exigir que os objetos de sua predileção se apaixonassem por ela... Era uma devoradora de almas.

Como você percebe Vivendo sob o fogo em relação a poesia de Tsvetáieva e vice-versa?

O livro é o enredo dos poemas. Um livro fundamental para entendê-los e acompanhá-los.

Qual a relação entre vida (experiência) e literatura (verbocriação) na obra dela?

Tsvetáieva insiste que primeiro vinha a vida, depois a criação. Mas está claro que as duas existem em função uma da outra. Ela sente que se aproxima a morte quando não consegue mais compor.

O que os jovens poetas brasileiros podem aprender com as páginas incendiárias da grande poeta russa?

Há, sim, alguns preceitos fundamentais para os jovens poetas: 1) em termos de arte, não fazer concessões; 2) em termos de vida, ser fiel a seus princípios íntimos; 3) acreditar que a arte é a expressão privilegiada e os artistas, seres que receberam um dom pelo qual devem prestar contas. 4) a arte exige exercício constante e dedicação contínua. E muitos outros que cada poeta há de encontrar...
http://jbonline.terra.com.br/editorias/textosdoimpresso/jornal/ideias/2008/09/27/ideias20080927003.html

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