quinta-feira, 7 de maio de 2009

O mito da pátria de chuteiras


Livro relata fatos e ficção ligados a uma equipe de futebol que se tornou uma alegoria da resistência do povo ucraniano à ocupação nazista

JBONLINE

Marcelo Kischinhevsky*

Reprodução

O F.C. START reuniu jogadores do glorioso Dínamo de Kiev e tornou-se mito ao travar batalhas contra nazistas no campo e na guerra
Futebol & guerra: resistência, triunfo e tragédia do Dínamo na Kiev ocupada pelos nazistas
Andy Dougan
Tradução de Maria Inês Duque Estrada
Jorge Zahar
204 páginas, R$ 29

A agradável tarde de 7 de junho, de temperatura amena, típica do verão em Kiev, contrastava com a tensão estampada no rosto de cada funcionário da Padaria nº 3. Seu time de futebol, batizado de F.C. Start, estava prestes a escrever um dos capítulos mais espetaculares - e ao mesmo tempo nebuloso - da história do esporte mundial.

O uniforme se limitava a um jogo de camisas de malha vermelha, que evocava a bandeira da União Soviética. Tudo o mais era improvisado: em vez de calções, calças cortadas; no lugar das chuteiras, sapatos comuns, de lona. O adversário também era inusitado - nas fileiras do Rukh, formavam velhos conhecidos, simpatizantes da Alemanha nazista. Era o pontapé inicial do primeiro e único campeonato da Ucrânia ocupada por Hitler. Um torneio que, disputado no amargo ano de 1942, faria nascer um dos maiores mitos do futebol internacional.

As lendas e os fatos relacionados à equipe do Start, na verdade um combinado de jogadores do Dínamo de Kiev e do rival Lokomotiv, são narrados num livro excepcional, do jornalista e escritor escocês Andy Dougan, Futebol & guerra: resistência, triunfo e tragédia do Dínamo na Kiev ocupada pelos nazistas.

Dougan não escreveu exatamente um livro sobre futebol, mas sim sobre a tragédia que se abateu sobre o povo ucraniano e todo o intrincado jogo de interesses políticos em torno do lendário time do Start, que venceu todas as partidas que disputou até ser encarcerado no temido campo de extermínio de Siretz, em Babi Yar, nos arredores de Kiev. Esse mito, propalado por autores de renome como o uruguaio Eduardo Galeano, pode ser resumido da seguinte forma:

Era uma vez um time de futebol, orgulho da Ucrânia, que lutou bravamente contra a invasão dos alemães. Quando Kiev foi ocupada, todos foram presos. Só escaparam de ir para o campo de concentração por obra e graça de um Oskar Schindler local, que os levou para trabalhar numa fábrica de pães. Lá, formaram novamente uma equipe e voltaram a enfrentar os nazistas num campeonato de futebol armado pelas tropas de ocupação para provar a superioridade ariana. Ganharam todas as partidas, defendendo a honra da Ucrânia e do socialismo. Na última, bateram uma seleção germânica e, por isso, logo após o fim do jogo, foram fuzilados, ainda vestindo seus uniformes.

A história comovente do chamado Jogo da Morte circula há várias gerações no meio do futebol e até inspirou um péssimo longa-metragem, Fuga para a vitória, no qual Pelé (?!) interpreta um dos jogadores. Pena que, em grande parte, trate-se apenas de um mito, nascido de relatos de torcedores sobreviventes da ocupação nazista e reiterado pelos dirigentes soviéticos. Uma versão conveniente sobre o heroísmo e a abnegação do povo ucraniano, que finalmente agora é destrinchada pela ampla pesquisa empreendida por Dougan.

Ok, de fato, parte do time do Dínamo de Kiev lutou contra os nazistas nos campos de batalha. Muitos desapareceram nesse período e seus corpos jamais foram encontrados. As tropas ucranianas eram mal equipadas e treinadas. Em muitos pelotões, havia um fuzil para cada grupo de cinco soldados. Do outro lado, marchavam alemães bem nutridos, muitos dos quais acreditavam na propaganda de sua superioridade racial.

Kiev caiu e iniciou-se um dos períodos de maior barbárie da história humana. Em novembro, menos de um mês após a ocupação, 100 mil civis já haviam sido executados, dos quais 75 mil judeus. Era demais mesmo para um povo que sobrevivera, na década anterior, à Grande Fome orquestrada por Stálin - o ditador soviético que confiscou grande parte da declinante produção de grãos ucraniana, deixando a população local à míngua - e à política de deportações de dissidentes para campos de trabalhos forçados na Sibéria.

Com o país submetido à servidão, os nazistas reativaram algumas das padarias (na verdade, grandes fábricas de pães) existentes antes da ocupação, como a nº 3. A população foi dividida em castas. No topo da pirâmide, estavam os alemães, seguidos pelos arianos de países aliados. Abaixo, estavam os ucranianos, impedidos de exercer qualquer atividade qualificada. A economia deveria voltar a funcionar basicamente para garantir a exportação de trabalhadores rumo às fábricas germânicas de armamentos. Alguns ucranianos emigraram voluntariamente para fugir das péssimas condições de vida no país ocupado, mas a maioria (mais de 40 mil por mês) foi enviada para a Alemanha na mira de fuzis.

Neste momento, Josef Kordik, tcheco de origem, mas fluente em alemão, identificou-se como austríaco e conseguiu o controle da Padaria nº 3. Apaixonado por esportes, este sujeito rude e amargurado conseguiu reunir, entre seus funcionários, diversos atletas que passavam toda sorte de necessidades como cidadãos de segunda classe. Entre eles, jogadores do Dínamo, muitos remanescentes da conquista do título soviético de 1936, como Trusevich, Goncharenko, Korotkykh, Makhinya e Kuzmenko.

Dougan relata todas as dificuldades enfrentadas por estes jogadores para sobreviver a uma guerra que, ao acabar, havia reduzido a população de Kiev de 400 mil habitantes para 80 mil. É impressionante seu esforço de cotejar fontes contraditórias para episódios polêmicos, como a lendária vitória sobre a suposta seleção alemã no Jogo da Morte. O time germânico, chamado Flakelf (algo como os ''Onze da Bateria Antiaérea''), estava longe de ser uma equipe de atletas profissionais da Luftwaffe (Força Aérea), como seria descrita posteriormente na mitologia soviética.

Mesmo assim, ressalta o escritor, era uma tropa de ocupação buscando sobrepujar ucranianos, assim como havia ocorrido no campo de batalha. E não apenas o Flakelf fracassou, mas acabou humilhado pelos talentosos mas famintos jogadores do Start, que não estavam livres da rotina de trabalhos forçados e só melhoravam sua dieta graças à comida fornecida às escondidas por torcedores e soldados romenos, aliados de ocasião dos nazistas.

O desfecho é trágico, mas a maior surpresa da narrativa é descobrirmos que desconhecemos, em larga extensão, a história da opressão ao povo ucraniano, que não teve a publicidade de outros genocídios do século 20. Há no livro momentos inquietantes, como a descrição detalhada da máquina de extermínio alemã e a incômoda semelhança entre os interrogatórios a que os jogadores foram submetidos anos antes, no período stalinista, e durante a ocupação nazista. E a mais perversa ironia: a cortina de silêncio imposta aos sobreviventes do Start, que não puderam, durante décadas, contar suas histórias sob pena de macular a versão oficial comunista.

Com esse gol de placa, Dougan mostra que futebol também é coisa séria, para ser estudada a fundo, sob pena de se incorrer em mistificações. E expõe as entranhas da mitologia da pátria de chuteiras, tão cara aos cronistas esportivos brasileiros, ávidos pela criação de mártires como os do Dínamo.

*Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e colunista do JB


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