quarta-feira, 13 de maio de 2009

Uma negra na Inquisição


A Inquisição e as etnias
Luzia Pinto, 50 anos, preta forra, natural de Angola
(Processo Inquisição Lisboa nº 252)

Neusa Fernandes

Luzia Pinto, 50 anos, preta forra, natural de Angola, moradora na Vila de Sabará, junto à Capela de Nossa Senhora da Soledade, foi presa em 1742, pelo Santo Ofício de Inquisição, acusada de feitiçaria. Era filha de Manoel da Graça, natural de Angola, e de Maria da Conceição, natural do Congo. Tinha dois irmãos: João e Angela. Jovem, veio de Angola para a Bahia de onde seguiu para Minas. Nesta Capitania dava consultas, curava doentes, como foi o caso de Luís Coelho Ferreira que, desprezando a Medicina, procurou a africana para ser medicado.7

No seu processo depuseram 19 testemunhas. Todas acusaram Luzia de praticar curas, através de receitas de papas e remédios feitos de ervas, raízes e vinho, e de fazer adivinhações em meio de ritual cantado e dançado. Para tanto, vestia-se à moda de anjo. Usava fita larga na cabeça e trazia um alfanje na mão. As pessoas cercavam-na, enquanto os atabaques eram tocados. Dançando, vinham-lhe “os ventos de adivinhar” e o dom de curar os “defeitos”. Saltando como cabra, Luzia fazia trejeitos, bramidos e algazarras. Uma das testemunhas informou que a preta forra praticava essas danças com cascavéis enroladas nas pernas e invocando o Demônio.8

Tudo começara quando tinha 12 anos e morava em Angola, na casa de seu amo Manoel Lopes de Barros.
Para ilustrar, contava que um dia, saindo pela manhã para o quintal, repentinamente, perdeu os sentidos. Foi levada até a margem de um grande rio, onde encontrou uma velha que lhe perguntou para onde ia. Continuando o caminho, encontrou mais duas velhas e uma bifurcação, indicando um caminho sujo e outro limpo. As velhas mandaram-na seguir pelo caminho sujo, onde encontrou um velho, com vários meninos. Contando esses fatos ao clérigo de Angola, Manuel João, este lhe disse que o velho que encontrara era Deus.
Considerava-se cristã, tendo sido batizada e crismada na Igreja Nossa Senhora da Conceição. Seu padrinho foi um negro chamado João, mas de sua madrinha não sabia o nome. Comungava e praticava todas as obras de cristã. Afirmava que seus feitos e palavras provinham de Deus.

Luzia depôs que não tinha pacto com o Demônio, não o invocava, nem nunca o tinha visto em parte alguma, que Deus sabia estar ela dizendo a verdade. Articulava suas rezas, para atingir o objetivo das curas, com a prática de pagamento aos santos, pedindo “dos enfermos duas oitavas de ouro, as quais repartia para Santo Antônio e São Gonçalo”.9
Depois de responder a inúmeras e repetidas perguntas, após um ano de prisão, foi-lhe dado tormento, lançada em um dos três instrumentos de tortura mais usados pelo Tribunal da Inquisição — o potro. Era o potro, segundo a descrição de Lúcio de Azevedo, uma “espécie de ripas onde, ligado o paciente a diferentes voltas de corda nas pernas e braços, se apertavam aquelas com um arrocho, cortando-lhes as carnes”.10
Os outros dois instrumentos eram a polé e o tormento da água. O primeiro era o mais comum: correias de couro amarravam a vítima pelos pulsos. Assim amarrada, a vítima era levantada atrás das costas até o alto do teto da Câmara de torturas e, dali, era despencada até perto do chão. Com o solavanco do choque, destroncavam-se as juntas da vítima. A mesma operação era executada até três vezes.

O tormento da água era menos usado. Consistia no afogamento do réu deitado e amarrado com a cabeça para o alto, boca aberta onde lhe metiam panos, enquanto era obrigado a beber através de um funil dezenas de cântaros de água.
Alguns réus, a princípio, negavam todas as acusações. A resistência, em geral, não passava da terceira sessão. Vencidos pela obstinação dos Inquisidores, acabavam por reconhecer as culpas, pedindo perdão e pagando as penitências impostas. Luzia Pinto, entretanto, constituiu-se uma exceção. Durante o ano em que transcorreu o seu processo, a preta forra confundiu os inquisidores ao afirmar sempre sua crença em Deus, que lhe dera os dons sobrenaturais, para exercer o seu ofício de curandeira.
Longe de omitir suas opiniões ou de responder evasivamente, Luzia Pinto negou sempre que tivesse algum pacto com o Demônio. Pelo contrário, disse que tudo obrava por destino que Deus lhe deu. Afirmava que suas aptidões eram sobrenaturais, virtudes que Deus lhe dotara.
Os inquisidores consideraram que a “ré” vivia apartada da fé católica e que firmara um pacto com o Demônio, fazendo curas supersticiosas e adivinhando coisas ocultas.
A tarefa de condenar Luzia Pinto demandou 127 páginas de interrogatórios, depoimentos, pareceres inquisitoriais sobre sua crença e curas.
No Convento de Santo Domingo, em ato público, ouviu Luzia Pinto sua sentença — a condenação a quatro anos de degredo e a rezar cinco Padre-nossos e cinco Ave-marias todas as sextas-feiras, a confessar-se na Páscoa, no Natal, na Ressurreição do Espírito Santo e na ascensão de Nossa Senhora. Havia, ainda, a ameaça de penas mais pesadas, se reincidisse no crime.

Tendo vivido na África (Angola) e no Brasil (Bahia e Minas Gerais), Luzia realizou uma complexa rede de cruzamentos culturais, mesclando crenças africanas com a religião católica, trazendo e levando elementos de um universo cultural para outro.
E o processo inquisitorial, bem diferente em muito, do processo jurídico, não abriu espaço para considerar as diferenças étnicas nem para investigar o sincretismo religioso. Luzia, na verdade, cruzou duas devoções, praticando o catolicismo revestido por suas crenças africanas.
É aos “santos” de terreiro que se oferece preciosas prendas. Da mesma forma, no catolicismo, os devotos presenteiam seus santos milagreiros. Introduzindo o culto e a fé aos santos milagreiros do catolicismo ao ritual religioso que trouxe do berço africano, Luzia Pinto praticou um novo padrão cultural. Rezava aos santos e lhe oferecia pagamento como se estivesse obedecendo a uma voz divina de comando. Acreditava estar agindo em nome de uma religiosidade colonizadora. Era a voz do Deus do colonizador que guiava sua ação “herética”.

Apesar de nunca ter sido implantado no Brasil, como em Portugal, o Tribunal da Inquisição1 esteve presente e atuante na Colônia. Os Livros dos Culpados, bem como os processos da Inquisição de Lisboa revelaram que cerca de dois mil brasileiros foram presos, julgados e condenados em Portugal, até o século XIX.
No Brasil, o Tribunal da Inquisição iniciou suas atividades em 12 de fevereiro de 1579, durante o reinado do cardeal D. Henrique, quando D. Antonio Barreiros — bispo e governador da Bahia — foi designado comissário do Santo Ofício. Permaneceu até às vésperas da independência, atuando por intermédio de seus Comissários e Familiares

Comissários eram homens do clero, representantes do Tribunal. Tinham o poder de prender e o dever de informar tudo a Lisboa, encarregada dos casos brasileiros. Para o julgamento dos casos especiais, os Comissários poderiam contar com os Visitadores oficiais. Eram, portanto, os inquisidores da Colônia, podendo agir e tomar todas as atitudes que os inquisidores tomavam, inclusive examinar os pertences pessoais do preso, contas, Livros de Razão etc.
Familiares eram homens leigos, de influência, com “sangue limpo” e com funções semelhantes a dos Comissários, isto é, colher denúncias, investigar, confiscar os bens e prender.
Em regiões onde não havia Familiares nem Comissários, os bispos substituíram os inquisidores, ocupando o lugar desses agentes e organizando as visitas diocesanas.

Muitas vezes, o bispo se sentiu incompetente para julgar a culpa do preso ou mesmo para sentenciar. Nessas ocasiões especiais, poderia recorrer aos Visitadores oficiais. Assim, embora as visitas diocesanas se constituíssem na esfera episcopal, contaram com a participação direta dos membros do Santo Ofício, Comissário do Tribunal da Inquisição que acompanhavam os processos das devassas.2 Mesmo os Comissários residentes na Colônia poderiam ser designados para essa tarefa de “inquirir”, em determinadas regiões.3
Além dos bispos, familiares e comissários, o trabalho inquisitorial requisitava grande número de funcionários, como clérigos seculares e regulares. Mas o principal instrumento da política religiosa na Colônia eram mesmo os Visitadores que, acompanhados de um escrivão, percorriam as freguesias, onde era oficializada a Mesa da Visitação, com a tarefa de abrir os processos. Prenunciada por um ritual, preparado pelos clérigos locais, essas visitas podiam acontecer anualmente. Toda a população era convocada, através de edital, para responder interrogatórios preliminares, com 40 quesitos4 e delatar pessoas consideradas heréticas, quando da chegada do visitador.5

Na verdade, o Santo Ofício interferiu profundamente na vida colonial, durante mais de dois séculos, perseguindo portugueses, brasileiros, índios e africanos, nos quatro cantos do Brasil. O maior número de denunciados vivia no Rio de Janeiro, Bahia, Paraíba e Minas Gerais. Eram cientistas, médicos, comerciantes. Na Paraíba, singular­mente, o maior número de prisões foi de mulheres.
Quando o Brasil se tornou a terra do ouro, os dirigentes de Inquisição passaram a se preocupar com a massa que afluía às minas. Mas o Tribunal procedeu também a prisões no Amazonas, atingindo aos naturais de terra. Processos inquisitoriais inéditos, pertencentes ao Arquivo Nacional de Torre do Tombo comprovam as perseguições, como o da índia Florência Perpétua, habitante do Rio Negro (Amazonas), acusada de poligamia, e da negra forra Luzia Pinto, habitante de Minas Gerais, acusada de bruxaria.

UMA ÍNDIA NA INQUISIÇÃO
(Processo Inquisição Lisboa no 225)

Em 30 de outubro de 1768 foi presa pelo Tribunal da Inquisição a índia Florência Martins, conhecida também como Florência Perpétua, acusada de poligamia. Florência tinha entre 25 e 28 anos. Era coxa de uma perna, porque lhe faltavam alguns dedos do pé. Natural do sertão do Rio Negro, pertencia à nação Baré, Capitania do Rio Negro, mas, no momento de sua prisão, morava em Poyares, Bispado do Pará. Em seu depoimento informou que seu pai foi o índio Diogo e “uma índia infiel”, ambos falecidos.
Ainda menor, ela e seus pais vieram da Aldeia de Bararoá, desceram o Rio Maieneuxi até o Rio Negro, onde se juntaram a outros índios. Na descida, foram todos recolhidos pelo jesuíta Antônio José, à Vila do Borba, que se chamava Aldeia dos Trocanos. Nesta Vila, foi batizada, comungava e fazia as demais obras cristãs. Casou-se, em 18 de julho de 1757, com o índio Julião Coelho, na Paróquia da Vila, tendo como testemunhas o índio Ariquena de Abreu e a mulher Valentina Ariquena. Nove anos depois, conheceu o índio Antônio de Lima, com quem combinou fugir. Levando suas duas filhas, foi com Antônio para Poyares, onde com ele se casou em 5 de janeiro de 1766, na Igreja Paroquial, na presença do Reverendo Vigário Vicente Ferreira da Silva, tendo como testemunhas o índio Tomé de Brito e a índia Mariana, mulher do índio Roque. Os casamentos foram realizados na língua tupi.

Por ter contraído segundas núpcias, tendo vivo o seu primeiro marido, foi denunciada e presa pela Inquisição. Em seu depoimento explicou que se casou com Antônio, porque seu marido Julião estava há muito tempo doente e, por isso, não realizava o matrimônio.
Vários moradores da Vila do Borba depuseram no processo, informando que sabiam dos dois casamentos realizados pela índia Florência, e confirmaram que o primeiro marido, Julião, sofria de chagas cancerosas. Tudo “por ouvir dizer”, sem precisarem os dados.
Julgada pelo Tribunal, teve o Conselho inquisitorial sensibilidade para distinguir as diferenças culturais entre as duas civilizações. A índia Florência Martins Perpétua foi severamente repreendida pela Mesa. Entretanto, os inquisidores mandaram-na soltar, alegando que: “não deve ser a ré mais severamente punida (...) porque sendo indispen­sável a necessidade de haver malícia para haver culpa, a barbaridade da ré que ainda a acompanha de tal modo que não se sabe explicar na língua portuguesa, faz com que conserve daquela natureza bárbara e selvagem em que foi nascida e criada no sertão”.

Comparada ao século anterior, pode-se ver que a repressão política, econômica e religiosa se intensificou na Colônia, como bem o demonstrou o Regimento das Superintendentes, Guardas Mores e Oficiais, de 1702, elaborado para a região das minas de ouro. Os exames de pureza de sangue se tornaram mais rígidos e aumentou o número de familiares. Para as minas, por exemplo, foram designados nove familiares. Apesar da importância e do sangue puro, os familiares sofreram várias acusações de roubos.
Em Minas Gerais, os representantes do Tribunal processaram e condenaram blasfemos, sodomitas, concubinos, bígamos, judaizantes e feiticeiros, na primeira metade do século XVIII, quando os processos se multiplicaram no Tribunal da Inquisição. Acusações de heresia ocorreram em menor número.
Fantástico foi o processo de Pedro Rates Henequim que, depois de viver vinte anos em Minas, foi denunciado à Inquisição, como “cabalista”, queimado, depois de ser afogados no Rio Tejo.6

Numerosas foram as prisões por feitiçarias, entre os homens, como, por exemplo, o escravo Bernardo Pereira Brasil que, curiosamente, “curava” doentes, tirando ossos de seus corpos e chupando-os para lhes tirar os feitiços. Sofrendo devassa, recebeu como pena 60 açoites, de seu próprio amo, na rua principal do Arraial.
Outro acusado de feitiçaria foi o negro Domingos Caldeireiro que fazia curas com feitiçarias em sua própria casa, onde se reuniam outros negros para um ritual de danças e batuques.

NOTAS
1. A Inquisição se estabeleceu em Portugal, em 1547, por força da bula “Meditati Cordis”, de Paulo III. Já em 1536, o rei D. João III havia conseguido que o Tribunal do Santo Ofício atuasse no Reino, fazendo suas primeiras vítimas, apresentadas no primeiro Auto de Fé, em 1540. Era regulamentado por um Regimento que foi, através dos tempos, modificado, conforme os interesses políticos e econômicos da Instituição. O primeiro Regimento data de 1552. O segundo, de 1613 e vigorou até 1640, quando entrou em vigor o quarto Regimento que durou 134 anos. Somente em 1774, o Marquês de Pombal o substituiu, elaborando o quinto Regimento do Santo Ofício.
2. Figueiredo, Luciano Raposo. As Práticas Inquisitoriais nas Minas Colonial, In: 1º Congresso Brasil-Portugal, Lisboa, p. 4.
3. Siqueira, Sônia. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade. São Paulo, Ática, 1978, p. 139.
4. Os quesitos dos Interrogatórios abrangiam todos os crimes e transgressões religiosas, como: heresias, blasfêmias, feitiçarias, bigamias, solicitações, sacrilégios, sodomias, incestos, bestialidades, concubinatos, falsos juramentos, judaísmo, corrup­ções, empréstimos, dívidas, usuras, vinganças e muitos outros. Pode-se concluir que os interrogatórios das visitas diocesanas, especulavam profundamente, os costumes, radiografando toda a vida social da paróquia.
5. Essas visitações foram propostas por D. Diogo da Silveira, ao rei, em 1536, com o objetivo de penalizar os hereges, sobretudo os seguidores do judaísmo: “Algumas pessoas, assim como homens e mulheres que não temendo o Senhor Deus, nem o grande perigo de suas almas, apartados de nossa Santa Fé Católica, tendo, crendo, guardando e seguindo a Lei de Moisés e seus ritos, preceitos e cerimôniais e tendo outras opiniões e erros heréticos.” APUD Furtado, Junia Ferreira — Homens de Negócio, São Paulo, FFLCH/USP, tese de Doutoramento, 1996, p. 273.
6. Processo Inquisição Lisboa no 4864.
7. Processo Inquisição Lisboa no 252, p. 10.
8. Processo Inquisição Lisboa no 252, pp. 36 e 39.
9. Processo Inquisição Lisboa no 252, p. 76.
10. Uma das vítimas desse tormento foi o jornalista Hipólito da Costa que afirmou serem as cordas causas de violentas compressões no corpo inteiro.

www.rj.anpuh.org/Anais/1998/autor/Neusa%20Fernandes.doc
Foto: http://www.espada.eti.br/n1676.asp






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