Em entrevista à
CH, o sociólogo palestino Sari Hanafi, considerado um dos expoentes da
intelectualidade do mundo árabe, compartilha reflexões sobre o mundo islâmico e
a atual cena política do Oriente Médio neste início de século.
Por: Cláudio
Pinheiro e Henrique Kugler
Naquela manhã de setembro, Sari Hanafi
se preparava para um passeio. Seu destino: uma favela carioca. “Talvez haja
semelhanças entre as favelas e os campos de refugiados no Oriente Médio”,
cogitou o pesquisador. Hanafi é um sociólogo palestino nascido no Líbano – mais
especificamente, no campo de refugiados de Chatila, ao sul de Beirute. Sua
primeira graduação foi em engenharia civil. Mas logo optou por seguir carreira
em sociologia. A familiaridade com a matemática certamente veio a calhar, pois,
em suas análises sociológicas, Hanafi não se intimida diante de assuntos como
estatística, técnicas numéricas avançadas e mesmo linguagens de programação –
temas pouco comuns para acadêmicos devotos das humanidades.
Professor da Universidade Americana de
Beirute, além de vice-presidente da Associação Sociológica Internacional (ISA),
Hanafi é considerado um dos expoentes da intelectualidade do mundo árabe. Ele
está prestes a lançar seu novo livro, Arab research and knowledge society:
an impossible promise, sem tradução prevista para o português, em que
explora como o conhecimento científico transita entre a academia e a esfera
política. Mas outro importante trabalho seu vai ganhar uma edição brasileira: é
o artigo 'Publicar globalmente, perecer localmente versus publicar localmente,
perecer globalmente', que será lançado em 2015 como parte da coletânea Práticas
e textualidades: pensando a pesquisa e a publicação, da Editora FGV.
De passagem pelo Brasil, Hanafi divide
com os leitores da Ciência Hoje algumas reflexões sobre a sociologia
do mundo islâmico. E compartilha suas impressões sobre a atual cena política
que se descortina no Oriente Médio neste início de século.
Ciência Hoje: O senhor está prestes a lançar o livro Arab research and knowledge society: an impossible
promise (Pesquisa árabe e sociedade do conhecimento: uma
promessa impossível, em tradução livre). De que trata a obra?
Hanafi: Falamos sobre a produção de conhecimento
no mundo árabe. No livro, abordamos os problemas e desafios dessa produção, e
também analisamos como o conhecimento é traduzido para diferentes públicos.
Tratamos de todas as áreas científicas.
Mas, na segunda parte da obra, damos atenção especial às ciências sociais –
procurando entender como elas podem ser deslegitimadas pelo Estado e por grupos
ideológicos ou religiosos. Um dos temas mais importantes é o que chamamos de
‘tradução de conhecimento’, ou seja, como o saber produzido nos campos
científicos é convertido em recomendações para políticas públicas.
E como é esse diálogo no mundo árabe, entre acadêmicos
e governantes?
Fiz uma pesquisa na Síria e analisei um
período de uma década. Estudei alguns ministérios e notei que eles jamais
encomendaram nenhum tipo de estudo científico. Isso nos mostra que os políticos
são, digamos, autossuficientes; eles não precisam de conhecimento. E não
há, em geral, comissões independentes para avaliar nada.
Outro ponto interessante: existia um
tipo de fetichismo com relação às ciências básicas e aplicadas. Na Síria, nos
anos 1990, mais de metade dos gabinetes ministeriais eram compostos por
engenheiros. Eis a ideia por trás disso: os problemas sociais eram entendidos
como uma questão de engenharia social. Esse cenário emerge em função da baixa
demanda pelas ciências sociais. E também porque os próprios cientistas sociais
muitas vezes, covardemente, não exercem o pensamento crítico.
Em suas palestras, o senhor tem dito que muitos
processos políticos ocorridos na América Latina podem servir de exemplo à realidade
do Oriente Médio. Por quê?
Sou assíduo defensor da
internacionalização das ciências, incluindo as sociais e as humanidades. Todos
devem conversar com seus pares, globalmente. Na universidade, ensino
disciplinas relacionadas a mecanismos de transição democrática. E diria que 80%
dos exemplos que uso em sala de aula são oriundos da América Latina. A história
desse continente tem muito a nos ensinar.
Pensemos nos mecanismos da chamada
justiça de transição, como processos judiciais, memória, verdade, reparação e
reforma institucional. São mecanismos bastante complexos. Há diferentes
receitas – muitas já usadas na América Latina – para suavizar a transição para
a democracia. Esse é um exemplo importante de como a internacionalização das
ciências sociais pode ser útil.
Mas, no campo da sociologia, muitos pesquisadores se
preocupam mais com análises regionais do que globais. O senhor tem uma postura
crítica diante dessa postura. Por quê?
Sou crítico à mitologia da
singularidade. Em outras palavras: muitos pensam que um dado processo social,
em determinado país, é único. E assim pesquisadores supervalorizam as
especificidades de cada fenômeno social. Como prejuízo, abandonam o
entendimento de possíveis regras gerais sobre o funcionamento da sociedade. Isso
é especialmente válido nessa era de globalização. Pois estamos de fato
interconectados.
Inúmeros problemas devem ser
compreendidos tanto regional quanto internacionalmente: tráfico de drogas,
organismos geneticamente modificados, distribuição de renda, consumismo. Há
temas que transcendem a ideia de Estado nacional. São universais.
Poderia nos contar sobre suas origens e sobre sua
experiência de vida no campo de refugiados de Chatila, no Líbano?
Nasci em 1962 e vivi por um quarto de
século num campo de refugiados. Cresci em uma família de classe média baixa. E
isso quer dizer que o único caminho de ascensão social é a educação. É essa a
via pela qual muitos palestinos de minha geração optaram. Historicamente, esse
é um dado importante: por essa razão, os palestinos acabaram sendo, em certo
momento, o grupo mais instruído de todo o mundo árabe. Mas isso mudou.
As condições nos campos de refugiados
eram precárias e não contavam com boas escolas, ou boas universidades. Além
disso, não se encontrava trabalho. Era a reprodução de um esquema de pobreza.
Conheço alguns cientistas sírios que vivem, hoje, em campos de refugiados.
Estão na linha da pobreza e são excelentes físicos, químicos,
antropólogos. Espero que outros países abram suas portas para eles. Essa
diáspora, muitas vezes, pode acabar construindo novas e importantes conexões.
Enfim, na década de 1980, me mudei para
a França. E lá comecei minha carreira internacional. Alguns acadêmicos que
estudam campos de refugiados acabam sendo criticados – por não conhecerem de
perto a realidade que analisam cientificamente. Bem, eu vivi num lugar desses
por 25 anos. É o suficiente? [risos].
Você leu apenas o início da entrevista
publicada na CH 320. Clique aqui para acessar uma versão parcial da
revista e ler o texto completo.
Imagem: Em novo livro ainda sem
tradução para o português, Hanafi fala sobre a produção de conhecimento no
mundo árabe, seus problemas e desafios. A foto mostra detalhe do Instituto do
Mundo Árabe, em Paris. (foto: Gilmar Mattos/ Flickr – CC BY-NC-SA 2.0)
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