Maputo
(Canalmoz) – Leia a seguir o poema do português José Jorge Letria, a propósito
de uma recente ocorrência na Grécia, em que um cidadão se suicidou para chamar
à atenção para a crise no seu País:
Quando
se ouviu um tiro na Praça Syntagma,
logo
houve quem dissesse: “É a polícia que ataca!”.
Mas
não, Dimitris Christoulas trazia consigo a arma,
a
carta de despedida, a dor sem nome, a bravura,
e
vinha só, sem medo, ele que já vivera os tempos
de
silêncio e chumbo do terror dos coronéis.
Mas
nessa altura era jovem e tinha esperança.
Agora
tudo isso findara, mas não a dignidade,
que
essa, por não ter preço, não se rende nem desiste.
Dimitris
Christoulas podia ser apenas um pai cansado,
um
avô sem alento para sorrir, um irmão mais velho,
um
vizinho tão cansado de sofrer. Mas era muito mais
do
que isso. Era a personagem que faltava
a
esta tragédia grega que nem Sófocles ou Édipo
se
lembraram de escrever, por ser muito mais próxima
da
vida do que da imaginação de quem efabula.
Ouviu-se
o tiro, seco e certeiro, e tudo terminou ali
para
começar logo no instante seguinte sob a forma
de
revolta que não encontra nas bocas
as
palavras certas para conquistar a rua.
Quando
assim acontece, o silêncio derruba muralhas.
Aos
jovens, que podiam ser seus filhos e netos,
o
mártir da Praça Syntagma pediu apenas
para
não se renderem, para não se limitarem
a
ser unidades estatísticas na humilhação de uma pátria. Não lhes pediu para
imitarem o seu gesto,
mas
sim que evitassem a sua trágica repetição.
E
eles ouviram-no e choraram por ele, e com ele,
sabendo-o
já a salvo da humilhação
de
deambular pelas lixeiras para não morrer de fome.
Até
os deuses, na sua olímpica distância,
se
perfilaram de assombro ante a coragem deste gesto.
Até
os deuses sentiram desprezo, maior do que é costume, pela ignomínia de quem se
vende
para
tornar ainda maior a riqueza de quem manda.
A
Dimitris bastou um só disparo, limpo e breve,
para
resumir a fogo toda a razão que lhe ia na alma. Estava livre. Tornara-se herói
de tragédia
enquanto
a Primavera namorava a bela Atenas,
deusa
tantas vezes idolatrada e venerada.
Assim
se despedia um homem de bem,
com
a coragem moral de quem o destino não vence.
Quando
o tiro ecoou na praça de todas as revoltas,
Dimitris
Christoulas deixou voar uma pomba,
uma
borboleta, uma gaivota triste do Pireu
e
disse, com um aceno: “Eu continuo aqui,
de
pé firme, porque nada tem a força de um homem
quando
chega a hora de mostrar que tem razão”.
Depois
vieram nuvens, flores e lágrimas,
súplicas,
gritos e preces, e o mártir da Syntagma,
tão
terreno e finito como qualquer homem com fome,
ergueu-se
nos ares e abraçou a multidão com ternura.
(José Jorge Letria, 06 de Abril de 2012, com a devida
vénia do Canalmoz)
Imagem: O dia em que mataram o rei / José Jorge Letria ;
ilustrado por Afonso Cruz.
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