É preciso travar a geração do escangalhamento
Maputo (Canalmoz) - A Constituição da República refere que “todas as camadas patrióticas da sociedade moçambicana num mesmo ideal de liberdade, unidade, justiça e progresso, cujo escopo era libertar a terra e o Homem, engajaram-se na luta por princípios que devolveram ao povo moçambicano os direitos e as liberdades fundamentais”. No preâmbulo lê-se ainda que “a Constituição de 1990 introduziu o Estado de Direito Democrático, alicerçado na separação e interdependência dos poderes e no pluralismo, lançando os parâmetros estruturais da modernização, contribuindo de forma decisiva para a instauração de um clima democrático que levou o país à realização das primeiras eleições multipartidárias”, diferentemente da inicial que suscitou uma guerra sangrenta de que não se pode dissociar como causa a veleidade e livre arbítrio de um punhado de cidadãos ambiciosos de poder e pitosgas quanto às consequências que a sua medíocre visão histórica poderia suscitar.
Esses cidadãos auto-proclamaram-se força dirigente da Sociedade e do Estado. Deu no que deu: sangue por todo o lado, miséria generalizada, refugiados em todo o lado, dentro e fora do país. Desgraça.
Os traços desse regime – destruição da sociedade velha, criação do homem novo, evacuação dos improdutivos para campos de trabalhos forçados, reeducação dos reaccionários e execução sumária dos inimigos do povo – foram obras de quem não teve dúvidas de decisões que tomou. Deu numa guerra tremenda.
Hoje estamos na mesma. Um punhado de indivíduos vencedores de eleições promovidas num ambiente de total baralhada, de leis eleitorais contraditórias, suscitadas por esse mesmo grupinho que as manobrou com o intuito de assegurar legalidade aos actos eleitorais, prepara-se para mudar a lei fundamental a fim manter no poder o seu actual líder e consequentemente fazer do Estado a sua machamba.
Esse grupinho imagina que ninguém mais, entre os mais de vinte milhões de cidadãos, está capaz de exercer os cargos que exercem. Esquecem-se que em qualquer país realmente empenhado em construir uma genuína democracia, os mandatos são limitados a prazos determinados.
É o grupinho de sempre. O tal das certezas que depois acabam em pancadaria sangrenta.
Se o grupo for avante com os seus propósitos, estamos no peugada de um autêntico golpe de Estado em que o homem que ainda pode estar sujeito a procedimentos judiciais internacionais por actos que, ainda que sendo do passado, não prescrevem, pode estar a engendrar formas de se perpetuar no poder.
A presente Constituição “reafirma, desenvolve e aprofunda os princípios fundamentais do Estado moçambicano (…) e assegura que a ampla participação dos cidadãos na feitura da Lei Fundamental traduz o consenso resultante da sabedoria de todos no reforço da democracia e da unidade nacional”. Mas a maioria parlamentar prepara-se para decidir entre quatro paredes, ignorando o povo.
A Constituição estabelece que Moçambique é um estado democrático em que a Soberania reside no povo, mas esse grupo prepara-se para ignorar o povo.
A defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei; o reforço da democracia, da liberdade, da estabilidade social e da harmonia social e individual; a promoção de uma sociedade de pluralismo, tolerância e cultura de paz, são objectivos fundamentais.
Os actos contrários à unidade nacional visando atentar contra a unidade nacional, prejudicar a harmonia social, criar divisionismo, situações de privilégio ou discriminação com base em vários pressupostos, entre eles a “opção política”, “são punidos nos termos da lei”.
Mas há, mesmo assim, quem quer voltar a fazer do País uma “cotada” de alguns.
O presidente da República “só pode ser reeleito uma vez” e foi esta a Constituição que o Senhor Guebuza jurou cumprir. Se for para além disso, estará a desonrar-se a si próprio, tanto mais que já disse, publicamente, que não se recandidatará. Quer tudo: as propriedades privadas e o poder político num país em que a constituição prescreve direitos do Estado e direitos privados.
Só tem de seguir o exemplo do seu antecessor, mas parece que está a querer ir com o chinelo para além da sua perna. Há fortes suspeitas disso.
Na qualidade de PR é também chefe do Governo. Pressupõe-se, então, que o mesmo condicionalismo que o abrange no que respeita à recandidatura a PR no fim do segundo mandato, se aplica a todas as funções que nesta Constituição são inerentes ao cargo de chefe de Estado.
Mesmo que se preparem agora mais poderes para o primeiro-ministro, como já houve quem lançasse essa hipótese, Guebuza estaria em condições morais para ocupar tal cargo com outro presidente? Será que Moçambique é um parque de diversões de políticos irresponsáveis? Quererá ele ser um desses comuns politiqueiros só porque, na Russia, Putin fez uma dessas?
Na Constituição vigente há “limites materiais”. Não se revê a Constituição porque um grupo de senhores entendeu que a oportunidade deles voltarem a excluir os outros, está de novo ao seu alcance.
As leis de revisão constitucional têm de respeitar a independência, a soberania e a unidade do Estado; a forma republicana de Governo (…); o sufrágio universal, directo, secreto, pessoal, igual e periódico na designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania das províncias e do poder local; o pluralismo de expressão; (…); o direito de oposição democrática”.
A Constituição vigente impõe que as alterações destas matérias são obrigatoriamente sujeitas a referendo. A forma republicana de governo pressupõe que se deve respeitar os mandatos e a alternância.
O problema a certa altura deixa de ser jurídico e passa a ser político.
Quer isto dizer que poder-se-á entender como TRAIÇÃO e USURPAÇÃO DE PODER qualquer alteração que não seja com a exclusiva intenção de melhor servir o Povo. Neste caso as alterações de que se fala serão para que um punhado não largue o poder político.
Condições formais, legais, para se promoverem alterações à Constituição em termos de poderes extraordinários pode haver, mas quando o legislador introduz certas cláusulas pétrias, fixas, está a ter em conta a necessidade de passarmos a ter um Estado moderno, em que, com os princípios sagrados, que mexem com as mais diversas sensibilidades humanas, não se brinca. Foi uma das condições para a Guerra Civil terminar.
Mesmo que se admita (ainda que para muitos seja forçado) que a Frelimo ganhou as últimas eleições legislativas com margens confortáveis que lhe dão legitimidade para alterar a Constituição a seu bel-prazer, é preciso ter-se em conta que sob a sua batuta encapuçada foram excluídas candidaturas e candidatos para poder chegar a ter a posição de alterar a constituição. Pode-se falar em golpe premeditado.
Mesmo assim ganhou com menos de um quarto de votos da totalidade dos moçambicanos com capacidade eleitoral.
Há mais de três quartos dos moçambicanos que não votaram ou votaram noutros. Isto é preciso ter-se em conta.
Esse cenário mostra bem que há mais legitimidade fora do Parlamento para se exigir que não se mexa nos pontos sagrados da democracia e se respeite os prazos dos mandatos e outros princípios constitucionais, do que a maioria qualificada da Frelimo na Assembleia da República, possa ter.
A Frelimo e o seu presidente têm de ter presente que se chamarem a si “poderes extraordinários” para alterar a Constituição, para acomodar a sua apetência pela ditadura ou continuidade no poder de uns certos “brazonados”, o povo pode também vir a chamar a si “poderes extraordinários” para impedir isso; para impedir a Frelimo e o seu presidente de ter veleidades semelhantes às que já tiveram antes do país entrar pela via da violência.
O mesmo tipo de ambição hegemónica já transformou o País num vale de lágrimas.
O Presidente da República não pode recusar a promulgação da lei de revisão, consta da Constituição. O senhor Guebuza terá sempre essa desculpa, para ‘sacudir a água do capote’. Mas a Constituição vigente prevê também “Limites circunstanciais” que impediriam que a Assembleia da República avance com uma revisão contrária à vontade dos que se reviram nesta Constituição e não foram votar porque não imaginavam que fosse intenção dos vencedores do pleito empreender tamanha rasteira ao Povo.
Pode ser que o Povo aí chame a si “Poderes especiais” e se subleve de tal forma que seja declarado o Estado de Sítio. “Na vigência do estado de sítio ou do estado de emergência não pode ser aprovada qualquer alteração da Constituição”, prevê a Lei Fundamental. Será que a irresponsabilidade vai deixar as coisas ir ao extremo de nos levar ao princípio da história da geração do escangalhamento?
Quando a Guerra Civil começou, o Partido Frelimo sonhava que não tinha oposição. Depois foi o que se viu.
Aconselhamos moderação e, acima de tudo, juízo. Temos todos de evitar repetir os mesmos erros. O tempo é para andarmos para a frente. Não para os que já puseram as vidas dos moçambicanos em risco uma vez, voltem a brincar aos cowboys.
(Canalmoz / Canal de Moçambique) 2010-08-06 09:34:00
Imagem: nossomocambique.blogs.sapo.pt
Sem comentários:
Enviar um comentário